Opinião - Demétrio Magnoli: Os juízes de Caracas

há 4 meses 13

Há uma certa graça –uma graça bufa e trágica– no que acontece na Venezuela. O Tribunal Superior "certificou" os resultados eleitorais proclamados pelo Conselho Nacional Eleitoral (CNE), proibiu a divulgação das atas e acusou o candidato oposicionista Edmundo González Urrutia de desobediência judicial, pelo "crime" de divulgá-las. Em suma, o ditador Nicolás Maduro, proprietário dos juízes de Caracas, decidiu governar por meio da máxima repressão e, de quebra, humilhou Lula e a "ativa e altiva" diplomacia brasileira.

São muitas graças. Segundo a lei venezuelana, só o CNE tem a prerrogativa de fornecer resultados eleitorais –mas os juízes de Caracas sequestraram para si mesmos tal atribuição. A lei venezuelana declara públicas as atas eleitorais –mas os juízes supremos as decretaram secretas. Mais: ao "certificar" os resultados do CNE, o tribunal está implicitamente dizendo que as atas divulgadas por González seriam papéis sem valor –mas, mesmo assim, acusou-o de publicar documentos eleitorais "secretos".

Lula inspirou Maduro a recorrer ao seu plantel de juízes de estimação. Logo depois da eleição, o presidente brasileiro explicou que "nada de anormal" ocorria na Venezuela e sugeriu às partes a intervenção do tribunal superior. De lá para cá, o regime chavista teve tempo para falsificar as atas de modo a confirmar as mentiras anunciadas pelo CNE. Era, contudo, missão impossível: não é viável fraudar uma derrota devastadora, cerca de 66% contra 30%, ainda mais diante da exposição das atas verdadeiras ao escrutínio mundial.

Ditaduras só desabam quando, além do repúdio popular, experimentam fraturas internas. Inexistem sinais de cisões nos altos escalões do regime de Maduro, mas sobram evidência de extensas fissuras na sua base social. A oposição obteve 80% das atas eleitorais das mãos de militares de baixa patente, policiais e militantes chavistas espalhados por centros de votação de todo o país que desobedeceram ordens de cima destinadas a ocultar tais documentos. A madrugada da eleição foi palco de uma insurreição silenciosa no interior do aparato da ditadura.

As atas publicadas pela oposição foram analisadas por inúmeros especialistas, inclusive do Carter Center, a única ONG independente autorizada a acompanhar as eleições, que constataram sua confiabilidade. Diante disso, a maioria dos países latino-americanos denunciou a fraude ou reconheceram o triunfo oposicionista. A pressão diplomática tinha o potencial de expandir para a cúpula chavista as fissuras que se espalham na base do regime –mas Lula, Amorim e o Itamaraty saíram celeremente na defesa de Maduro. Sob o álibi de manter pontes de negociação, o Brasil articulou com a Colômbia e o México um bloco negacionista que se recusou a condenar a fraude eleitoral.

Lula não pode, simplesmente, repetir a nota ignóbil da direção nacional do PT, que opera como caixa de ressonância do regime cubano. A pantomima oficial brasileira só funcionaria com algum tipo de "negociação" –e, numa tentativa desesperada de obtê-la, surgiu a ideia luminosa de uma nova eleição (um "segundo turno", na curiosa expressão cunhada pelos gênios do Itamaraty).

Sempre há uma primeira vez. Em nome da aliança com Putin, a diplomacia lulista rompeu um paradigma ao admitir a violação da soberania territorial da nação ucraniana e, em nome da aliança com Maduro, rompeu um outro, igualmente sagrado, pela ousada proposta de cancelamento da soberania eleitoral da nação venezuelana.

Maduro espremeu o limão e jogou fora o bagaço. No intervalo de trégua diplomática proporcionada pelo Itamaraty, costurou um consenso de sobrevivência na cúpula do seu regime. Os juízes de Caracas anunciaram o fim do jogo eleitoral. Lá, é hora de uma "nova revolução", ou seja, da repressão pura e dura. Aqui, a diplomacia "ativa e altiva" está de cócoras.

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