"O Urso" bateu o recorde de indicações ao Emmy em comédia: foram 23. Sou das poucas pessoas que não gostou da série –e o número de indicações ao principal prêmio da TV norte-americana sugere que o errado, aqui, não é a série. Fica aí o disclaimer.
Em vez de "não gostei", talvez seja mais correto dizer que "impliquei" com "O Urso". Ambientado na cozinha de um restaurante, me pareceu a epítome de um engodo que os chefs de cozinha vêm salteando há mais de uma década, a fim de aromatizar suas mortais existências com notas de heroicas epopeias.
Qual o engodo? É que trabalhar numa cozinha, em termos de perigo, coragem e violência, equivale a lutar nas trincheiras da Primeira Guerra Mundial. A cada vez que, na série, alguém se desesperava com o ponto da carne ou gritava, feito um endemoniado, "cadê a faca grande?! Quem pegou a minha faca grande?!" eu pensava: amigo, cê tá fazendo churrasquinho no pão, não invadindo a Prússia.
Embora os personagens naquela lanchonete feiosa e de luz fria não percebam, existe uma diferença nada sutil entre comer a mostarda em sua forma pastosa e aspirá-la no estado gasoso. Sim, é verdade, você pode cortar o dedo picando cebola, mas os riscos de preparar um "mirepoix" não chegam nem perto dos de uma esgrima com baionetas.
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Ou seja, meu consagrado: para com essa gritaria desenfreada, com essa câmera tremida, com esse suor na testa e descasca logo essas batatas como faz a minha avó, aos 94 anos, na cozinha do restaurante dela.
Dói-me reconhecer, mas um dos primeiros a vir com essa panca de cozinheiro-pirata-do-caribe foi meu ídolo Anthony Bourdain. Em seu livro "Cozinha Confidencial" e em seus vários programas de TV, ele falava do passado nas cozinhas de NY como o jornalista José Hamilton Ribeiro narra sua passagem pela guerra do Vietnã –e, até onde eu sei, ao contrário do Zé Hamilton, Bourdain não perdeu a perna pisando numa mina (deixada na porta da despensa, quem sabe, pelo restaurante concorrente?).
É curioso, mas até pouco tempo atrás, o estereótipo do chef de cozinha era o oposto desse bad boy. O "mestre-cuca" (veja que nome tão pouco UFC) era um cara fresco, cheio das nove horas, empavonado, bigodinho de Salvador Dalí, chapéu branco em formato de panetone, quase sempre com sotaque francês. Autoritário, às vezes, verdade, porém mais semelhante a uma professora chata do que ao Capitão Nascimento.
Aos poucos, nos últimos dez ou 20 a anos, contudo, o bigodinho do Dalí foi dando lugar às barbas por fazer. Os "oui, oui" e "voilà" foram substituídos por "Fuck! Fuck!" e "Fuck you!". Em muitos casos as panças e papadas deram lugar a músculos e tatuagens.
Não sei bem a razão da metamorfose. Terá a ver com o maior interesse do homem comum pela culinária? Será que o mesmo movimento que "gourmetizou" brigadeiro, cachorro-quente e coxinha abrutalhou os cozinheiros, fazendo com que nós, os Homers Simpsons mundo afora, nos sentíssemos parte da alta cozinha, pero sin perder la machura, jamás? Sei lá.
Sei é que acho essa mania de pegar um nabo como quem porta um Kalashnikov coisa bastante ridícula. Talvez seja essa a razão, aliás, de "O Urso", uma série tão tensa, estar concorrendo não em drama, mas em comédia. Agora entendi a piada. Fuck! Fuck! Fuck you!