Manter o barulho de ruas, avenidas e estradas abaixo dos 55 decibéis poderia salvar 110 mil vidas por ano, sugerem pesquisadores dinamarqueses.
O problema é que, só na Europa, quase 150 milhões de pessoas são submetidas a níveis de barulho que ultrapassam esse limiar pelo fato de elas morarem nas proximidades de aeroportos, linhas de trem ou vias para automóveis.
Aliás, a poluição sonora é reconhecida cada vez mais como um fator que prejudica o corpo e a mente: a própria Organização Mundial da Saúde (OMS) classifica os ruídos como o "fator de risco ambiental mais subestimado".
Essas foram algumas das informações apresentadas pelo pesquisador Thomas Münzel, da Universidade de Mainz, na Alemanha, durante uma sessão científica realizada na sexta-feira (30) no Congresso Europeu de Cardiologia.
A edição deste ano do evento, que acontece em Londres, no Reino Unido, reúne mais de 30 mil médicos de várias partes do mundo e apresenta as principais novidades sobre a saúde do coração e dos vasos sanguíneos.
Durante a palestra, Münzel explicou que o barulho pode prejudicar o sistema cardiovascular por dois caminhos diferentes.
Em primeiro lugar, há uma conexão direta entre a exposição contínua aos ruídos e prejuízos à saúde. É o que acontece, por exemplo, no processo de perda auditiva.
Segundo, existe uma relação indireta entre as duas coisas. Münzel destacou que a poluição sonora pode, por exemplo, dificultar a comunicação entre as pessoas e afetar diretamente o sono de um indivíduo que mora num bairro muito barulhento.
Esses dois fatores, por sua vez, geram estresse, irritação e raiva. Com o passar do tempo, essas sensações se tornam crônicas e promovem a liberação de substâncias que machucam o endotélio, a camada que reveste a parede interna dos vasos sanguíneos.
Essas lesões podem ser a origem de problemas ainda mais graves e desembocar em infarto agudo do miocárdio ou acidente vascular cerebral (AVC).
O que dizem as pesquisas
Dois trabalhos divulgados durante a ESC 2024 trouxeram novas informações sobre a poluição sonora e o risco cardiovascular.
O primeiro estudo, apelidado de Decibel-MI, avaliou 430 pessoas com menos de 50 anos que, por uma série de razões, foram continuamente submetidas a níveis de barulhos mais elevados do que a média da população. Todas elas também haviam sofrido um infarto.
Os resultados do acompanhamento mostraram que a exposição aos ruídos aumenta o risco de ter um piripaque cardíaco, mesmo entre os indivíduos que apresentavam um baixo risco de passar por um evento desses.
Nesse contexto, "baixo risco" descreve aquelas pessoas que não apresentam as condições que tradicionalmente predispõem uma pane do coração, como hipertensão, colesterol alto, tabagismo, diabetes, histórico familiar...
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Os autores desse primeiro estudo, realizado na cidade de Bremen, na Alemanha, propõem que a exposição ao barulho deve ser incluída nas avaliações de saúde dos pacientes como uma maneira de ajudar a definir o risco de sofrer com uma doença cardiovascular mais séria no futuro.
A segunda pesquisa, realizada na Universidade de Borgonha e no Hospital de Dijon, na França, buscou entender qual era a perspectiva de saúde dos pacientes que já haviam sofrido um primeiro infarto e, depois, tinham contato com muito ruído no dia a dia.
"No estudo, encontramos uma forte associação entre a exposição ao barulho urbano, particularmente durante a noite, e um pior prognóstico um ano depois do primeiro ataque cardíaco", resumiu a professora Marianne Zeller, autora do artigo, em comunicado divulgado à imprensa.
Foram avaliados dados de 864 indivíduos que sobreviveram a um infarto. Depois de 12 meses de acompanhamento, 19% deles apresentaram algum evento cardiovascular mais sério (como uma nova internação por insuficiência cardíaca, AVC, forte dor no peito ou morte).
Os cientistas quantificaram o nível de poluição sonora na casa de todos os voluntários.
A média europeia é de 56 decibéis na escala de ponderação A (dBA), que é comumente usada para fazer medições do tipo.
A título de comparação, 50 dBA equivalem mais ou menos ao barulho de chuva.
Outras atividades e fenômenos geram sons mais baixos, como o sussuro (30 dBA), o tique-taque do relógio (20 dBA) ou o revoar das folhas de uma árvore (10 dBA).
Mas há aquelas coisas que viram literalmente barulhos —e, em longo prazo, podem prejudicar o coração, segundo as evidências científicas. É o caso da passagem de caminhões (90 dBA), da britadeira (100 dBA) ou da decolagem de aviões (120 dBA).
Ao fazer os cálculos que levaram em conta a realidade dos pacientes acompanhados, os especialistas franceses descobriram que existe um risco 25% maior de sofrer algum evento cardiovascular mais sério a cada aumento de 10 dBA durante o período noturno.
Zeller pondera que o achado deve ser confirmado por outros estudos, mas acredita que a pesquisa pode "ajudar a identificar novas estratégias ambientais de prevenção", incluindo eventualmente até algum tipo de isolamento acústico na casa de indivíduos com alto risco de sofrer um infarto.
Durante a apresentação no ESC 2024, Münzel reforçou a noção de que o barulho causa doenças cardiovasculares.
Numa pesquisa que o pesquisador alemão publicou em abril deste ano, a cada 10 dBA adicionais de barulho do trânsito, há um aumento de 3,2% no risco de sofrer com alguma enfermidade que afeta o coração e os vasos sanguíneos.
Münzel ainda lembrou que os ruídos emitidos durante o período noturno parecem ser particularmente prejudiciais à saúde —e afetam diretamente parâmetros como a pressão arterial e a função endotelial (a camada que reveste a parede interna dos vasos sanguíneos).
O médico observou isso em uma série de estudos com cobaias de laboratório, nos quais a exposição ao barulho aumentou a pressão arterial, ativou substâncias inflamatórias e gerou estresse oxidativo no organismo —um combo de fatores que gera prejuízos ao coração.
Dá pra 'silenciar' a poluição sonora?
Para alguns dos mais tradicionais fatores de risco cardiovascular (hipertensão, colesterol alto, diabetes...), existem medidas simples e efetivas que podem ser colocadas em prática para ajudar a prevenir consequências mais graves, como infarto e AVC.
É o caso, por exemplo, de fazer uma dieta variada e equilibrada, praticar atividade física regular, não fumar, não exagerar nas bebidas alcoólicas e manter o peso dentro das metas.
Mas e no caso do barulho? Como lidar com algo que vai muito além da ação individual —e que afeta a maioria das pessoas que vive nas grandes cidades?
Durante sua palestra, Münzel pontuou que existem algumas políticas públicas efetivas que já foram avaliadas e podem ser implementadas na prática.
No caso das rodovias, avenidas e ruas, é possível criar limites para a emissão de ruídos nos motores de veículos, dar incentivos a carros elétricos (que são bem mais silenciosos), fazer mudanças na composição do asfalto e dos pneus (que podem absorver o som ou diminuir o atrito, por exemplo), instalar barreiras de som nas vias mais movimentadas e reduzir o limite de velocidade em locais densamente populados.
Nos transportes sobre os trilhos, algumas das táticas são melhorar a infraestrutura dos trens para baixar o barulho que eles fazem durante as freadas, além de investir em modelos elétricos.
Já na aviação, Münzel cita a possibilidade de atualizar os protocolos de pouso e decolagem, com o objetivo de reduzir os decibéis das turbinas. Outra recomendação é a criação de políticas para reduzir o tráfego aéreo durante a noite.
Segundo o especialista, que citou um relatório da Comissão Europeia que detalha as maneiras de combater a poluição sonora, algumas dessas alterações estruturais —como a instalação de barreiras acústicas em vias muito movimentadas— poderiam reduzir o barulho em até 20 decibéis em determinados bairros e regiões.
"Nós precisamos chamar a atenção para o impacto significativo da poluição sonora como um fator de risco para doenças cardiovasculares", concluiu Münzel durante a palestra na ESC 2024.