Novos livros reinventam clássicos da literatura com bonecos e esculturas

há 2 dias 3

Logo no início do seu famoso livro "Por que Ler os Clássicos", o italiano Italo Calvino lista 14 breves definições sobre esse tipo de narrativa. Talvez uma das mais interessantes seja esta aqui: "Toda primeira leitura de um clássico é na realidade uma releitura".

É claro que Calvino estava pensando nos adultos quando escreveu o conjunto de ensaios. Mas o que acontece se colocarmos as crianças nesse jogo? Quando elas descobrem os irmãos Grimm ou entram no Sítio do Picapau Amarelo pela primeira vez, será que isso também é uma forma de releitura?

Bom, se clássico é clássico e vice-versa, nada indica que a ideia não funcione também na infância. Lobos escondidos em florestas, crianças que desobedecem os pais, princesas que caem em sono profundo, bonecos que ganham vida, pessoas que viram bichos e outras histórias clássicas rondam as nossas vidas desde muito antes de aprendermos a ler —às vezes, antes mesmo de nascermos.

"Clássicos são aqueles livros que chegam até nós trazendo consigo as marcas das leituras que precederam a nossa e atrás de si os traços que deixaram na cultura ou nas culturas que atravessaram", escreve Calvino.

Isso quer dizer que não precisamos ler esses livros? Não é bem assim. Não é à toa que eles recebem esse nome, muito menos que vêm sobrevivendo há gerações, séculos, milênios. "Toda releitura de um clássico é uma leitura de descoberta como a primeira", afirma ainda o italiano. Sim, estamos diante de um paradoxo. E essa é a magia.

Mas há outro elemento que deixa a conversa ainda mais interessante, sobretudo quando falamos de edições para crianças e adolescentes: as ilustrações. É verdade que textos clássicos são sempre os mesmos. A mudança está sempre no mundo, nos leitores, nas leituras que fazemos. E nas imagens também. Novas ilustrações têm o poder de multiplicar interpretações, meter o bedelho nas histórias, dar novas caras aos personagens, confrontar o próprio texto, contradizer o autor, quebrar certezas e tirar a leitura (e o leitor) do conforto e do piloto automático.

É o que fazem alguns lançamentos recentes, que reinventam Pinóquio e peças de Shakespeare a partir de bonecos e esculturas de madeira.

O mais surpreendente dessa leva é o "As Aventuras de Pinóquio" recém-lançado pela editora Maralto, com nova tradução do texto integral do italiano Carlo Collodi. Nele, todas as imagens são produzidas com bonecos pela argentina Juliana Bollini, que constrói as esculturas com diferentes materiais. À medida que viramos as páginas, pedaços de madeira dão vida ao protagonista, botões formam olhos de tubarão, arames articulam corpos, folhas de jornal viram chapéus e assim por diante.

Como costuma ocorrer com todo bom clássico em domínio público, a marionete que sonha em ser menino de verdade já ganhou inúmeras representações ao longo das décadas. Mas a mais famosa continua sendo a da Disney, de 1940, com um Pinóquio de gravata azul, chapeuzinho amarelo e rosto de bom samaritano —o que, convenhamos, não tem muito a ver com o seu espírito desobediente e errático.

Pois não espere nada disso nas esculturas Bollini, que fogem da estética Mickey. Fotografados em diferentes poses, os bonecos fogem da fofura aveludada e escancaram uma versão mais crua, áspera e rústica, que não se envergonha de ter farpas e tintas descascadas. Pinóquio, Gepeto e Grilo Falante misturam o teatro de bonecos com um surrealismo de cacarecos. Suas formas afagam e incomodam ao mesmo tempo, assim como faz o texto de Collodi.

Já o ilustrador brasileiro Rodrigo Mafra parte da mesma ideia e de uma técnica parecida para ilustrar três peças de Shakespeare: "Romeu e Julieta", "A Megera Domada" e "Otelo", publicadas pela editora Elo. Nesses casos, porém, o texto não é o original do dramaturgo inglês, mas adaptações em prosa feitas por Flávia Côrtes.

Para a trinca, Mafra cria uma coleção de esculturas esculpidas em madeira, repletas de curvas e sinuosidades. Com isso, Julieta, Otelo e Katherina escapam das representações realistas e se transformam em pequenas figuras disformes, como peças de um xadrez dramático. Sempre envoltos em jogos de luz e sombra, claro e escuro, os bonecos ajudam a dar um toque de fantasia às histórias e a insinuar visualmente não só um palco de teatro, mas também a alma dos personagens.

Embora o pontapé seja o mesmo de "Pinóquio", o resultado estético é outro. As ilustrações são mais polidas, sem lascas, incapazes de enfiar farpas entre as unhas do leitor ou de gerar calos em quem folheia as edições. Afagam sem incomodar. É assim também com as adaptações dos três textos, que domesticam a linguagem e a estrutura de Shakespeare, numa tentativa de soarem mais amigáveis aos jovens de hoje.

A esperança é que isso sirva de isca. E que o leitor se encante com os clássicos adaptados, a ponto de mais tarde encarar as íntegras de "Romeu e Julieta", "A Megera Domada" e "Otelo", mas também de "Macbeth", "Crime e Castigo", "Odisseia", "Divina Comédia", "Dom Casmurro", "A Metamorfose". Afinal, a melhor parte de um clássico é sempre se cortar com ele. Ou, como diria Calvino, "os clássicos são livros que, quanto mais pensamos conhecer por ouvir dizer, quando são lidos de fato mais se revelam novos, inesperados, inéditos".

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