Negação da mudança do clima sobrevive como zumbi digital, diz historiadora

há 2 meses 22

[RESUMO] Em entrevista, Naomi Oreskes, renomada historiadora da ciência e professora de Harvard, comenta sua primeira viagem à Amazônia, onde passou dez dias no começo de agosto, e como a experiência alterou sua compreensão do bioma. Ela também analisa como as mídias sociais alavancaram a desinformação sobre o aquecimento global e a negação da ciência em geral, discorre sobre as diferenças entre o negacionismo de direita e de esquerda e defende que muitos dos pilares do capitalismo são apenas ideologia disfarçada de argumento irrefutável.

Naomi Oreskes publicou com Erik M. Conway, em 2010, um livro que feriu de morte a ideia de uma controvérsia científica legítima em torno do aquecimento global e da influência humana nele: "Merchants of Doubt" (mercadores de dúvida). Quatro anos depois a obra virou um documentário de cinema que confirmou a historiadora como celebridade acadêmica.

O subtítulo do livro não deixava margem para dúvida, porém: "Como um punhado de cientistas obscureceu a verdade sobre questões que vão da fumaça de tabaco ao aquecimento global". Hoje o volume figura com destaque em um campo relativamente novo de estudos, a agnotologia, que se define como a investigação de sistemas de produção e manutenção estruturais da ignorância.

Até o começo de agosto, a pesquisadora nunca tinha pisado na Amazônia, peça relevante no xadrez da crise do clima. Sua visão era antes marcada pelas imagens de destruição da maior floresta tropical do mundo, um estoque pantagruélico de carbono cuja devastação aceleraria o efeito estufa a níveis inimagináveis.

A Universidade Harvard, em que é professora titular, convidou-a para uma viagem de dez dias de imersão no bioma, na companhia de estudantes de todos os níveis, da graduação ao pós-doutoramento. A Folha participou da viagem a convite do Centro David Rockefeller de Estudos Latino-Americanos de Harvard.

O contato com a imensidão dos rios e a beleza da biodiversidade revelou-se experiência marcante, mais para a emoção do que para o intelecto. "Não se trata apenas de fatos e números, mas dessas plantas incríveis, animais incríveis e pessoas incríveis que conhecemos", disse nesta entrevista realizada em Manaus, da qual participou o jornalista Thiago Medaglia, do site Ambiental Media.

O ponto alto da imersão foram dois dias dormindo em redes no Acampamento 41, um dos vários utilizados em experimento sobre dinâmica de fragmentos florestais iniciado por Thomas Lovejoy nos anos 1970, uma área de floresta quase intacta. "Quem pensaria em uma lagarta como sendo bonita, ou um louva-a-deus, ou uma aranha?"

Quando ela escreveu "Merchants of Doubt", não existiam redes sociais, e os céticos do clima eram pesquisadores de renome que ao menos tentavam argumentar com evidências científicas, por frágeis e distorcidas que fossem. Mesmo refutados, seus argumentos falaciosos sobrevivem na internet como zumbis digitais, reconhece a historiadora, que vê as dificuldades crescerem no combate à desinformação.

Ela entende que a comunidade científica não foi bem na comunicação pública sobre a pandemia de Covid-19, por não antecipar a resistência às vacinas que sobreviria, para ela óbvia. "Não aprenderam nada."

Em novo livro com Conway, "The Big Myth" (o grande mito), a historiadora se volta contra outra vaca sagrada do capitalismo, uma versão deturpada de Adam Smith que endeusa a desregulamentação e que os autores chamam de fundamentalismo de mercado. Ronald Reagan convenceu os norte-americanos de que isso traria o paraíso, mas hoje eles estão mais infelizes e doentes, em meio à desigualdade galopante, afirma.

Quais são suas primeiras impressões sobre a Amazônia? Acha que a imagem da região trazida pela mídia ou por cientistas nos EUA corresponde ao que viu até agora?
Eu diria que não, porque muitas das imagens que via foram de devastação de partir o coração, acres e acres de floresta destruída, gado. Muitas fotos que vemos são de desmatamento, no entanto agora estivemos em muitos lugares lindos que estão em boas condições. O Acampamento 41 é um exemplo de floresta intacta. Conseguimos ver a beleza da floresta e o que está em risco, o que é diferente das imagens da mídia, de destruição.

Sente-se mais otimista por isso?
Não, porque sei intelectualmente o que está acontecendo. É mais como ter visto torna mais fácil falar do coração sobre isso. Parece um pouco mais emocionalmente autêntico, porque não se trata apenas de fatos e números, mas dessas plantas incríveis, animais incríveis e pessoas incríveis que conhecemos.

Há a cabeça e há o coração. E a parte do coração, de como é surpreendente essa paisagem, como são resilientes as pessoas que conhecemos, e tão generosas, calorosas e receptivas conosco. Cientistas falam o tempo todo sobre biodiversidade, mas é uma palavra muito neutra. O que vimos foi a variedade surpreendente da natureza, a beleza surpreendente de algo como uma lagarta. Quem pensaria em uma lagarta como sendo bonita, ou um louva-a-deus, ou uma aranha? Mas algumas das teias de aranha que vimos eram simplesmente incríveis.

Quando escreveu "Merchants of Doubt", não havia mídias sociais. Quanto elas mudaram o ecossistema de negação da mudança climática?
Não há dúvida de que a mídia social mudou o cenário para pior. Existem muitos outros canais diferentes de desinformação. A desinformação se espalha muito mais rapidamente, e também é mais difícil agora identificar as fontes.

Quando Eric Conway e eu escrevemos o livro, escrevemos em parte porque encontramos essas pessoas, esses cientistas influentes, que estavam espalhando desinformação sobre a mudança climática. Desde o início da investigação sabíamos quem era o inimigo, por assim dizer, e a pergunta que queríamos responder era: por quê?

Agora sinto que a questão está invertida: sabemos por que eles estão fazendo isso, mas nem sempre sabemos quem está fazendo, porque há muitas fontes de desinformação. Se você vir uma alegação enganosa nas redes sociais que foi republicada, republicada e republicada, não é fácil descobrir de onde ela se originou.

Há acadêmicos trabalhando nisso agora, incluindo meu pós-doutorando Geoffrey Supran. Mas isso requer a contratação de equipes de cientistas da computação e especialistas em inteligência artificial. Há pessoas fazendo esse trabalho, mas não eu.

Naquela época, céticos proeminentes como Fred Singer eram cientistas respeitáveis, e eles estavam pelo menos tentando permanecer no campo da ciência. Podem ter sido evidências falsas, mas eles estavam tentando trazer evidências para a mesa e convencer as pessoas de que a mudança climática não era coisa real. Diria que o tempo para esse tipo de negação acabou?
Não, porque uma das coisas que vemos é que —um dos meus parceiros chamou isso de negação zumbi— esses argumentos falsos, essas estratégias retóricas enganosas continuam surgindo em novas formas, novos lugares, novas vozes. Elas nunca desaparecem completamente.

Ainda há pessoas nas mídias sociais e em outros lugares tentando alegar que não sabemos realmente qual é a causa da mudança climática ou que ainda há incerteza.

Há muito mais do que eu chamaria de ataques genéricos à ciência. Uma maneira pela qual a negação das mudanças climáticas funciona agora é se desdobrando em uma desconfiança mais generalizada da ciência, relacionada à Covid e às vacinas. Durante a pandemia vimos muito disso, muitas das mesmas pessoas que eram céticas em relação à ciência climática estavam ativas durante a pandemia, lançando dúvidas sobre a eficácia das máscaras e a segurança da vacinação.

Como avalia o desempenho dos cientistas nesse debate da Covid e na comunicação com o público?
Muito ruim, eu diria. Foi uma fonte de enorme frustração para mim. Este é um exemplo em que vemos como a especialização da ciência funciona contra ela.

A tragédia da Covid foi que, de fato, a comunidade de ciências biológicas cometeu muitos dos mesmos erros que os cientistas do clima cometeram 20 ou 30 anos antes, foi como se não tivessem aprendido nada com as mudanças climáticas. Depois, cientistas me procuraram para dizer: "Ah, eu realmente queria ter lido 'Merchants of Doubt'".

Tenho a sensação de que eles estavam realmente despreparados e, especialmente se você pensar nas declarações oficiais do CDC [Centros de Controle de Doenças dos EUA] e da Organização Mundial da Saúde [OMS], sinto que houve muitos erros. Se esses cientistas tivessem falado com jornalistas, com historiadores da ciência, historiadores da medicina, lido "Merchants of Doubt", alguns dos erros poderiam ter sido evitados.

O maior erro é que, para mim, era totalmente óbvio que haveria resistência à vacina, porque vínhamos de 120 anos de resistência à vacina. Há resistência à vacina desde que existem vacinas. Esta é uma história muito antiga para historiadores da ciência e da medicina.

Durante o ano de 2020, o CDC precisava de algum tipo de estratégia para antecipar e potencialmente combater a resistência, que certamente apareceria. Mas, até onde pude discernir, nunca houve realmente um plano. Então, quando a resistência se desenvolveu, eles foram pegos de surpresa.

O resultado foi um grande número de pessoas nos Estados Unidos que se recusaram a ser vacinadas. Entre pessoas vacinadas, as taxas de mortalidade caíram drasticamente; entre as não vacinadas, isso continuou. Oitenta por cento das mortes por Covid nos Estados Unidos neste ano de 2024 foram entre pessoas não vacinadas. Peter Hotez estima que 500 mil mortes nos Estados Unidos poderiam ter sido evitadas se as pessoas tivessem sido vacinadas em tempo hábil, se tivessem aceitado as vacinas quando elas estavam disponíveis.

Que lições cientistas poderiam ter aprendido?
Sabemos que, quando os cientistas do clima foram atacados pela primeira vez, eles diagnosticaram mal o problema. Achavam que as pessoas estavam rejeitando as mudanças climáticas porque não entendiam a ciência. Então, se simplesmente explicassem melhor a ciência, as pessoas embarcariam. Vimos um pouco disso na situação da Covid também.

O chamado modelo de déficit?
Vimos isso, certo? "Ah, só temos de explicar como o RNA mensageiro funciona." Bem, explicar como o RNA mensageiro funciona é uma coisa boa, as pessoas devem entender. Mas essa não é a principal razão pela qual as pessoas rejeitam a ciência. Há um diagnóstico errado do problema e, portanto, remédios que são ineficazes.

Se eles tivessem olhado para o histórico de resistência às vacinas nos Estados Unidos —esqueça até mesmo a França ou outros países— saberiam que uma das razões pelas quais as pessoas rejeitam as vacinas é porque elas não têm um relacionamento com um profissional de saúde. Não há ninguém na vida delas que explique o que é a vacina, como ela funciona, quais efeitos colaterais se podem esperar, porque há efeitos colaterais, coisas que para a maioria das pessoas não soariam tão ruins.

Se uma pessoa não tem um profissional de saúde em sua vida, ela vai para a internet, onde é inundada com desinformação. Qual seria a estratégia para pessoas como essas? Talvez pudessem ser agentes comunitários de saúde, professores. Não sei. Alguém deveria ter pensado em quais recursos estavam disponíveis.

Sua obra desponta entre as poucas no campo novo da agnotologia, a produção estrutural da ignorância. Como surgiu essa linha de pensamento? Estava ligada à negação das mudanças climáticas?
A pessoa que mais impulsionou essa ideia nos Estados Unidos foi Robert Proctor, e ela surgiu de seu trabalho na indústria do tabaco. Em parcerias com algumas outras pessoas, como Alan Blanche, meu colega em Harvard, Stan Glantz na UCSF [Universidade da Califórnia em São Francisco], eles viram o que a indústria do tabaco fez, como promoveu a desinformação e financiou pesquisas com a intenção de desviar a atenção.

Robert se interessou em desenvolver um vocabulário para descrever essas coisas, porque era meio que propaganda, mas não era exatamente o mesmo que propaganda. Quando ouvimos falar em propaganda, geralmente pensamos em governos, em propaganda de guerra, mas era um pouco diferente, porque a propaganda governamental clássica não envolveria o financiamento de pesquisas enganosas.

Ele queria inventar uma linguagem, um vocabulário, para descrever o conjunto de atividades com as quais a indústria do tabaco se envolveu e que criaram ignorância. Ele diz que não inventou a palavra agnotologia, ele a encontrou em algum lugar.

Eu já estava trabalhando com mudanças climáticas. Há 20 anos, quando Robert estava realmente apresentando essa ideia, lembro-me de pensar, isso é exatamente certo. Eu era uma espécie de agnotologista precoce.

Agora não somos muitos, mas muito mais do que éramos há 20 anos. Acho que a ideia pegou e que as pessoas estão começando a entender que é uma estrutura muito poderosa para falar sobre um conjunto de questões que, de outra forma, seriam complicadas, porque você não está apenas acusando as pessoas de mentir.

Às vezes elas mentem, mentir faz parte da agnotologia, mas é apenas uma parte. Não é apenas propaganda. É um conjunto de atividades que produzem ignorância e sustentam a ignorância.

Seu novo livro, "The Big Myth", ataca de frente um pilar do capitalismo de estilo norte-americano, o fundamentalismo de mercado. Por que considerar isso uma ideologia, já que defensores afirmam que é assim que as coisas são?
Bem, porque eles estão errados. Não é assim que as coisas são. Primeiro de tudo, nem é assim que o capitalismo sempre foi. Passamos por períodos na história em que o capitalismo era altamente desregulado e passamos por períodos em que era muito mais regulado.

Temos evidências sobre isso e sabemos que é perfeitamente possível ter um mercado altamente regulado e até altas taxas de tributação marginal e ter uma economia produtiva crescente.

O caso em questão são os Estados Unidos nas décadas de 1950 e 1960, no governo do presidente Dwight Eisenhower: a taxa marginal de imposto era de mais de 90%, algo que seria impossível até mesmo discutir na América [do Norte] hoje. Fortes proteções para o trabalho foram colocadas em prática nas décadas de 1920 e 1930.

Essas leis não prejudicaram o crescimento econômico ou a prosperidade. Elas não prejudicaram o empreendedorismo. Também tivemos grandes quantidades de investimento governamental em ciência, pesquisa e inovação.

Essa combinação de um sistema capitalista regulamentado que protegia os trabalhadores exigia que pessoas muito ricas pagassem uma quantia realmente substancial de sua renda marginal de que não precisavam, e a economia foi muito bem. Mudou na década de 1980, em parte por causa de algumas questões reais.

O que mostramos no livro é que Ronald Reagan usou isso como uma oportunidade para pegar uma ideologia que não é verdadeira, para a qual a evidência não dá suporte, uma ideologia que o setor empresarial vinha promovendo por décadas sem sucesso, porque as pessoas sabiam que não era verdade.

Na década de 1980, a Grande Depressão havia desaparecido da memória, as pessoas tinham esquecido as lições do início do século 20 e do final do século 19. Eles se esqueceram das práticas monopolistas, e então Reagan convenceu o povo norte-americano: "Só temos de confiar na mágica do mercado, desregulamentar os mercados, para resolver todos os problemas. Liberdade, liberdade, liberdade, tudo vai ser ótimo".

Bem, não tem sido ótimo. Agora os Estados Unidos são um dos países mais desiguais do mundo, essa terra das grandes oportunidades. É em parte por isso que as pessoas estão com raiva, com a sensação de que essa oportunidade, que costumávamos ver como parte da fibra central da sociedade norte-americana, aparentemente encolheu para quase nada.

Os americanos estão mais doentes do que nossos colegas europeus. Estamos muito menos felizes e agora vivemos vidas mais curtas. Para mim, esta é realmente uma questão empírica. A prova do pudim é: como estamos indo?

Pesquisadores de agnotologia também estudam a produção de ignorância pela esquerda? No Brasil, há pessoas na esquerda que negam que Venezuela, Nicarágua ou Rússia sejam ditaduras ou que o Hamas seja terrorista, lutando por uma boa causa como libertadores do povo ou algo assim.
Depois deste ano, provavelmente precisamos estudar mais isso. Eu diria que a resposta é, em princípio, sim, claro, absolutamente. É assim que você sabe se uma ferramenta é uma boa ferramenta, se pode se aplicar igualmente à desinformação da direita, da esquerda, do topo, da base —e a resposta é, absolutamente, sim.

Pessoalmente não estudei isso porque, na minha experiência, nos tipos de questões em que trabalho, questões ambientais, a esquerda não participa da desinformação, porque não precisa, os fatos estão do lado dela.

Os fatos nos dizem que o fundamentalismo do livre mercado não funciona, não protege a economia, não protege as pessoas, não nos torna saudáveis ou felizes ou mesmo ricos. Não há razão para ninguém da esquerda deturpar a ciência, pelo menos quando se trata das questões que estudo.

Se eu fosse uma historiadora do Oriente Médio, poderia ser uma situação diferente.

No Brasil, parte da esquerda é muito a favor, por exemplo, da extração de petróleo. Até Lula e seu governo têm certa ambiguidade, para dizer o mínimo, porque de um lado abrigam Marina Silva, protegendo a amazônia, e, do outro, o ministro de Minas e Energia é a favor de extrair petróleo na costa amazônica.
Marxistas à moda antiga, que acreditam no desenvolvimento industrial?

Sim, nacionalismo, desenvolvimento industrial, exatamente isso.
"Ah, vocês fizeram isso e agora estão nos negando." Embora esse não seja exatamente um argumento de negação da ciência, sinto que é um argumento mais complicado e sutil, porque, afinal, não é um ponto completamente absurdo. Mas é interessante.

Então, aí está sua resposta: não temos negação climática de esquerda na América do Norte porque não temos nenhum marxista.

O argumento é que temos de aproveitar essa receita do petróleo para financiar a transição energética.
Isso é simplesmente ridículo.

Recorrendo ao título de outro livro seu: por que confiar na ciência?
A resposta é curta: porque funciona. Temos mais de 300 anos de experiência vendo que esse empreendimento é muito útil para nos ajudar a entender o mundo e usar esse entendimento para fazer coisas que nos tornam mais felizes, saudáveis e prósperos.

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