Mulheres ignoram estereótipo e abraçam o termo 'tia dos gatos'

há 3 meses 4

Sem filhos, solteira, morando sozinha e dona de um gato —para alguns, essas características em uma mulher representam fracasso. Tais mulheres são frequentemente rotuladas com o estereótipo de "louca dos gatos" ou "tia dos gatos".

O termo em inglês "cat ladies" foi usado em uma entrevista de 2021 por J.D. Vance, atual candidato a vice-presidente de Donald Trump. Vance afirmou que essas mulheres seriam "infelizes com as próprias escolhas e, por isso, querem tornar o resto do país [Estados Unidos] miserável também". O comentário ressurgiu recentemente, principalmente por ter como alvo Kamala Harris, então vice-presidente e atual candidata à presidência dos EUA, que não tem filhos.

Essas mulheres, para Vance, não atendem ao padrão esperado de mulher americana, ou seja, casada e com filhos. O termo remete às "solteironas" e é tido como um insulto.

"O estereótipo me faz lembrar das ideias autoritárias que existiram nos totalitarismos do século 20, que diziam que as mulheres têm obrigação de serem mães, constituir família e, portanto, oferecer filhos para a pátria", afirma Vanessa Bortulucce, historiadora da imagem, arte e cultura e professora universitária.

O estereótipo me faz lembrar das ideias autoritárias que existiram nos totalitarismos do século 20, que diziam que as mulheres têm obrigação de serem mães, constituir família e, portanto, oferecer filhos para a pátria

A historiadora diz que tal visão rechaça a ideia de mulher independente. "Não entende a pluralidade e a elasticidade de papéis sociais que as mulheres podem assumir ao longo da vida", diz Bortulucce. "A maternidade é apenas uma opção entre os vários papéis que uma mulher pode desempenhar ao longo da vida."

O gato, de certa forma, sempre esteve relacionado à feminilidade. Para dizer que uma mulher é bonita, dá para usar como sinônimo "gata". O animal também é tido como fiel companheiro das bruxas e associado à intuição e sabedoria. Há ainda quem diga que os gatos são mais independentes do que os cachorros, por exemplo, na hora de escolher qual pet ter em casa.

Ainda assim, vigora também o lado negativo do "tia dos gatos" como uma expressão machista, segundo especialistas ouvidas pela reportagem.

Bortulucce reforça também o lado etarista da denominação, uma vez que é usado geralmente para mulheres mais velhas. "É um termo preconceituoso. Preconceituoso com as mulheres e com a idade. É uma construção da mulher a partir dos 40 anos, que já é vista como velha na sociedade e, uma vez que fracassou por não ter um parceiro ou parceira ou por não ter filhos, a única alternativa que sobrou para ela é a ter animais."

Para a antropóloga social e professora da USP (Universidade de São Paulo) Eugenia Brage, tal mentalidade é arraigada na sociedade. "A tia dos gatos parece muito associada a essa mulher que não conseguiu cumprir um mandato social."

Enquanto o estereótipo é materializado na cultura em filmes e desenhos, como a personagem de Os Simpsons conhecida como a Louca dos Gatos, a denominação vem sendo abraçada por mulheres que amam os bichanos e não pretendem ter filhos —por ora. Taylor Swift, uma das maiores estrelas do pop, se autodenominou uma cat lady ao anunciar apoio à Kamala Harris.

Se é um insulto para alguns, para outras é um elogio. "Muitas pessoas ainda acreditam que é uma ofensa. Eu não enxergo dessa forma porque gato é um bicho muito especial", diz Heloisa Mandelli, 34.

Ela é tutora do Alcides e não tem filhos. Médica obstetra, sua profissão exige bastante tempo e, por isso, ela afirma, se relacionar com outras pessoas fica em segundo plano. "Eu me sinto bem, sou muito feliz com as minhas escolhas atualmente."

O Alcides é o amor de sua vida, ela diz. "Ele é meu grande companheiro. Para mim isso é suficiente."

Ela não é a única a virar o estereótipo do avesso e assumi-lo. Silvia de Oliveira, 38, tem como companhia o Elvis, seu gato de 15 anos. Ela conta que ele esteve ao seu lado em momentos difíceis, incluindo episódios de depressão, e também durante sua recuperação. Além disso, Elvis a acompanha em viagens por todo o Brasil. Silvia é do tipo de pessoa que vive trocando figurinhas de gatos com as amigas.

Geógrafa, ela afirma que o foco de sua vida sempre foi trabalhar e ser independente. "Se eu tiver dinheiro, consigo me bancar e bancar as minhas escolhas e as coisas que eu quero fazer", diz.

Hoje ela mora sozinha no Rio de Janeiro, tem um emprego estável, ajuda a família que está na região Sul, e cuida de si mesma, fazendo hobbies e atividades físicas. "Não acho que falta alguma coisa na minha vida, nunca tive esse sonho de casar, ser mãe, ter filhos", afirma.

Todas

Discussões, notícias e reflexões pensadas para mulheres

Brage, a antropóloga, afirma que existe um movimento de mulheres reivindicarem independência e a tomada de decisão da própria vida, incluindo a decisão de ser mãe. "A ideia de gato sempre aparece como um lugar muito potencializador dessa autonomia", diz.

Larissa Vasconcelos, 32, diz que se tornou quem mais temia: mãe de gato. Ela conta que quando era criança tinha uma vizinha solteira e com muitos gatos que era uma referência no bairro como a mulher que não deu certo na vida. Hoje, ela não vê o termo como um insulto.

É um sinônimo apenas de que eu estou tomando as minhas próprias decisões com base apenas no que eu quero para a minha própria vida

"É um sinônimo apenas de que eu estou tomando as minhas próprias decisões com base apenas no que eu quero para a minha própria vida", diz ela, que é assessora de imprensa, solteira e tutora do Hórus.

"Se eu descrevesse a minha vida como se eu fosse um homem, a sociedade não ia falar que eu não sou uma pessoa bem-sucedida", afirma.

Como parte da iniciativa Todas, a Folha presenteia mulheres com três meses de assinatura digital grátis

Leia o artigo completo