Ele roía as unhas, odiava beterraba e adorava ser o centro das atenções. Colecionava namoradas —e depois amantes— como camisas e chegou a plagiar textos. Tentou suicídio duas vezes. Mudou a história da luta pelos direitos civis.
Retirar Martin Luther King Jr. (1929-1968) do pedestal frio da hagiografia para voltar a situá-lo no centro pulsante de nossa humanidade comum —cheia de falhas e angústias, dramas e glórias cotidianas— é apenas uma entre as várias façanhas de "King: Uma Vida", biografia meticulosa que rendeu o Pulitzer ao seu autor, Jonathan Eig, e que chega ao Brasil pela Companhia das Letras.
Repórter nas décadas de 1980 e 1990, Eig estudou em escolas "integradas", com brancos e negros, desde pequeno, apesar de ter crescido em um bairro totalmente branco em Nova York. "Quando desci do ônibus no primeiro dia do jardim de infância, vi outro cheio de crianças negras. Elas se tornaram meus colegas de classe e amigos", conta. "Não fazia ideia, claro, de como Martin Luther King e o movimento pelos direitos civis tinham colaborado para isso."
Com o passar dos anos, seu interesse por temas de raça e desigualdade aumentou, a partir do intercâmbio com companheiros de sala de aula que o "desafiaram a pensar sobre o racismo de maneiras que nunca teria considerado se não tivesse frequentado esse tipo de escola".
A premiada biografia é uma proposta e uma resposta a esse desafio. A partir do acesso a documentos até então inexplorados, como as memórias inéditas de seu pai, também Martin Luther King, as fitas de áudio gravadas por sua mulher, Coretta Scott, documentos do FBI e centenas de entrevistas, Eig tece uma reconstituição delicada e contundente da trajetória do ícone americano.
Esse mergulho visceral também libera de estereótipos aqueles que o rodearam mais intimamente. As reiteradas paixões de King antecederam e continuaram após a vida com Coretta, mas este não foi nunca um empecilho determinante para o casal.
Academicamente mais sólida do que o marido e também dedicada à luta por igualdade em um país fortemente segregado, ela meditou sem fantasias sobre o futuro à sua frente e viu no matrimônio algo mais do que uma união tradicional.
Um possível paralelo, entre tantos habilitados pelo relato de Eig, emerge com a própria história dos pais de King, um casamento em que o cálculo profissional fez parte da decisão. Residia na família de sua mãe, Alberta, a origem da tradição de pastores batistas influentes que seu pai —"Daddy King", um homem ambicioso e esforçado— herdaria ao se casar com ela.
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A escrita despojada do autor permite ainda entender a complexa gênese do pensamento de King e como ele construiu seu estilo, ao dosar emoção na voz e racionalidade nas palavras, com uma erudição que "não atrapalhasse a mensagem", como enuncia o biógrafo.
A densidade intelectual de suas ponderações exigia atenção dos ouvintes brancos, enquanto a paixão com que as dizia garantia familiaridade a um público negro fiel às mensagens de esperança de seus líderes espirituais.
"King: Uma Vida" é um retrato honesto de uma pessoa comum determinada a conquistar algo excepcional. Em meio a essas múltiplas e às vezes desconcertantes camadas de humanidade, ressurge com mais força seu legado de ação, organização estratégica e profundidade filosófica ao exigir justiça social.
Ensinamentos indeléveis, forjados a partir de sonhos e dores de um dos "pais fundadores" dos Estados Unidos, como Eig escreve em seu livro e explica nesta entrevista.
Por que decidiu se dedicar a entender a vida de Martin Luther King Jr. em um nível de detalhe quase obsessivo?
Buscava qualquer maneira em que pudesse humanizar King, retirá-lo do pedestal e torná-lo carne, sangue e sentimentos novamente. Queria encontrar evidências de como ele se sentia, como sofria, o que pensava. Encontrei muitas pistas em documentos de arquivo, transcrições do FBI e entrevistas com seus amigos e colegas. No início, tinha um objetivo bem simples. Eu perguntava às pessoas: "Como ele era realmente? Como era estar na sala com ele? O que o manteve ativo quando as coisas se complicaram?".
Qual King encontrou, no final?
Descobri que King, apesar de todas as suas falhas, era ainda maior do que eu pensava. Descobri que ele era mais fiel, mais radical e mais corajoso do que eu imaginava. Ele teve todas as oportunidades de desistir, desaparecer, deixar que outra pessoa liderasse, mas não fez isso e se comprometeu de forma cada vez mais profunda e perigosa com suas crenças fundamentais na justiça, no amor, na não violência.
Ele poderia ter ficado em terreno seguro e confinado seu trabalho ao Sul dos Estados Unidos, mas não fez isso. Foi ao Norte para dizer que o racismo em Chicago era tão grave quanto em Birmingham. Falou sobre a Guerra do Vietnã, embora soubesse que isso o prejudicaria politicamente. Fez essas coisas porque as considerava questões morais e porque acreditava que era o que Deus esperava dele. King não era perfeito, mas deu o melhor de si e nunca perdeu a esperança.
Depois de ter acesso a tantos documentos e falar com tantas pessoas, o que mais te surpreendeu sobre a vida dele?
Fiquei surpreso com o quanto ele lutou com sua saúde mental. Foi hospitalizado inúmeras vezes devido ao que chamou de exaustão, mas que quase certamente era depressão. Tentou suicídio duas vezes quando era adolescente.
Também me surpreendi com o quão implacavelmente cruel o FBI e outros funcionários do governo foram nos seus esforços para destruir King e fiquei particularmente surpreso com o grau de envolvimento do presidente Lyndon Johnson.
Sua biografia sobre King vem imediatamente depois da de Muhammad Ali. Por quê?
Ali me levou a King. Ao entrevistar amigos do lutador, como [o comediante] Dick Gregory e [o político e diplomata] Andrew Young, percebi que muitos deles também poderiam me contar sobre King. Além disso, escrever o livro de Ali me deu a confiança de que poderia lidar com as maiores e mais desafiadoras vidas do século 20.
Como mulher negra, penso que também é muito valioso o fato de que seu livro evidencia a liberdade emocional de Coretta King.
Coretta Scott King ainda não foi objeto de uma biografia exaustiva. Quis que esse livro a apresentasse com a complexidade que ela merece e que também deixasse bem claro que ela era muito mais do que uma esposa que o apoiava, que ela era uma força motriz na vida e na carreira de King.
Também quis mostrar com nuances como ela e outras mulheres daquela época lutaram para superar os preconceitos que impediam a chegada de pessoas como ela a posições de liderança e poder. Coretta teve que superar até mesmo os preconceitos de seu próprio marido e conseguiu.
Espero que, ao mostrar seu casamento imperfeito e o comportamento imperfeito de King, possamos nos concentrar nas qualidades que tornaram Martin e Coretta perfeitamente grandiosos. Suas ideias, sua fé, seus sacrifícios, são essas coisas que mais importam no final.
Um dos efeitos colaterais da popularidade de ícones como King é que seu pensamento pode terminar diluído ou distorcido, de acordo com os interesses de cada época e grupo que o reivindica. Como entender sua vida e seu legado, especialmente ante um novo mandato de Donald Trump?
É muito importante lembrar que King nunca perdeu a esperança, mesmo depois de 29 prisões, um esfaqueamento e os esforços do FBI para destruí-lo. Ele acreditava nas pessoas. Na paz. Para mim, a eleição de Trump é uma expressão da frustração e do isolamento das pessoas.
King acreditava que o amor venceria o ódio. Pode não parecer assim hoje, mas penso que sua mensagem ainda pode nos ajudar a nos unirmos, especialmente se nos recusarmos a aceitar mensagens confortáveis e olharmos como ele nos desafiou a adotar um sentido de comunidade mais verdadeiro e profundo.