"A praticidade de entrar de onde eu estiver, em qualquer momento do dia, e ter acesso à programação me ajuda a não voltar para meu antigo padrão de comportamento", afirma Luzia (nome fictício), 48, sobre as reuniões virtuais de alcoólicos anônimos que frequenta. Em recuperação há quatro anos, ela viu no formato uma forma de se manter no tratamento que, como diz, vem salvando sua vida e a de sua família.
O fácil acesso e a garantia de privacidade das reuniões online são fatores que têm atraído principalmente mulheres e jovens. O anonimato nas plataformas contribui para que as mulheres se sintam mais à vontade, enquanto os jovens, familiarizados com o meio digital, chegam por curiosidade e acabam permanecendo no programa. É o que explica Lívia Pires Guimarães, presidente da Junta de Serviços Gerais de Alcoólicos Anônimos.
"Tradicionalmente, o imaginário sobre pessoas com vícios evocava uma predominância masculina, o que intimidava muitas mulheres a frequentar os encontros presenciais. Elas conseguem participar de casa, sem medo de violência ou julgamentos, além de possibilitar que elas cuidem dos filhos enquanto buscam ajuda", afirma.
Alessandra Calixto, vice-presidente da ABEAD (Associação Brasileira de Estudos do Álcool e outras Drogas), concorda com essa visão.
"Ainda vivemos em uma sociedade em que o alcoolismo e o vício em drogas são estigmatizados, especialmente quando se trata de mulheres. O ambiente online oferece um refúgio seguro no qual elas podem buscar ajuda sem se expor a julgamentos", afirma. "O anonimato ganhou uma nova camada de proteção no ambiente digital".
Ainda vivemos em uma sociedade em que o alcoolismo e o vício em drogas são estigmatizados, especialmente quando se trata de mulheres. O ambiente online oferece um refúgio seguro no qual elas podem buscar ajuda sem se expor a julgamentos
Grupos como AA (Alcoólicos Anônimos) e NA (Narcóticos Anônimos) já realizavam encontros virtuais há mais de 20 anos quando a pandemia da Covid, a partir de 2020, ajudou a consolidar novos formatos.
Antes desse período, o NA realizava 15 reuniões virtuais semanais. Hoje, são 127 grupos online com 680 reuniões virtuais por semana. Já o AA conta com 90 grupos online, que realizam cerca de 450 reuniões virtuais semanalmente.
Calixto menciona o uso de gru pos de apoio online como porta de entrada para o sistema de saúde, destacando sua eficácia na prevenção do suicídio e no suporte a pessoas com comportamentos aditivos, que muitas vezes não encontram apoio adequado nos serviços de saúde pública ou privada.
"Embora esses grupos não substituam o atendimento profissional, eles preenchem lacunas importantes, especialmente no que se refere à recuperação em grupo, que é o método mais eficaz para transtornos aditivos segundo evidências científicas", diz.
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Além disso, links de reuniões de diversas regiões do país podem ser acessados com facilidade, o que ajuda no intercâmbio entre culturas e realidades regionais.
"Pessoas de diferentes partes do Brasil, que antes não teriam acesso a essas reuniões, agora podem participar ativamente. Isso ampliou o alcance do programa e trouxe uma diversidade de experiências que fortalece o grupo como um todo", diz Guimarães.
Grupos independentes no WhatsApp, Telegram e Discord também se disseminam e funcionam como um meio contínuo para que os adictos compartilhem experiências por mensagens e ajudem uns aos outros, mas é preciso cautela.
Segundo Guimarães, esses grupos podem ser válidos, desde que sigam os 12 princípios e tradições de grupos anônimos. Ela recomenda que as pessoas verifiquem em sites oficiais para garantir que estão participando de grupos reconhecidos.
Para Calixto, o modelo online facilita a disseminação de apoio, mas não substitui a profundidade das conexões estabelecidas em encontros presenciais, que envolvem maior fraternidade e construção de novas redes, cruciais para muitos que sofrem de isolamento social.
Felipe (nome fictício), 42, há 21 anos frequentando grupos de NA, conta que tinha o hábito de tomar café, comer algo ou simplesmente conversar na praça em frente ao grupo após as reuniões presenciais. "No online não tem isso. Acaba a reunião e cada um segue com sua vida."
Ele frequentava encontros presenciais de NA diariamente. Após se mudar para uma cidade onde o grupo mais próximo ficava a 80 quilômetros de distância, no interior de São Paulo, ele passou a participar de reuniões virtuais.
Renê (nome fictício), 33, membro de NA em recuperação há 11 anos, reconhece que o contato humano das reuniões presenciais faz falta, mas acredita que o objetivo é atingido em ambos os formatos.
"Eu me senti acolhido como se fosse numa reunião presencial. Eu sinto a energia das pessoas do outro lado da tela, o sentimento que elas colocam. Isso é muito vivo", diz.
Devido ao trabalho e à rotina com seu filho autista de cinco anos, as reuniões online foram uma solução prática para conciliar rotina e família.
"Meu filho é muito apegado a mim e ficava ansioso quando eu saía de casa. As reuniões online me permitem continuar em recuperação e estar presente para ele ao mesmo tempo", explica.
"Eu me sinto totalmente à vontade para partilhar nas reuniões online como nas reuniões presenciais. Não tem diferença nenhuma", afirma Eduardo G., 50, há quatro anos frequentando reuniões de AA.
Ele menciona que muitos membros adotaram um modelo híbrido, participando de ambos os formatos, sendo um complemento do outro.
"O online acaba salvando vidas, porque oferece a possibilidade de acesso pelo celular, tablet ou computador, principalmente em regiões onde não há salas físicas. Agora, além das portas das reuniões presenciais, temos as janelas online. O alcance dessas janelas é impressionante. Frequentar foi a melhor coisa que eu fiz na minha vida", diz.
Onde encontrar os grupos virtuais
Alcoólicos Anônimos do Brasil
aa.org.br/reunioes-a-distancia
Narcóticos Anônimos
na.org.br/virtual
Esse projeto é uma parceria com a Umane, associação que apoia iniciativas no âmbito da saúde pública.