Mães trans conseguem amamentar com lactação induzida, mas sofrem preconceito até de médicos

há 7 horas 3

"Levei quase um mês para mandar mensagem para as médicas com medo de sofrer algum ataque", diz Erika Fernandes, 31, mãe de Noah, 2, sobre seu medo ao tentar amamentar. Ela não sabia de nenhuma mulher trans que tivesse amamentado, e as buscas na internet não confirmavam se era possível.

Um casal de mulheres que ela conheceu num aniversário passou o contato de médicas que trabalhavam com lactação induzida, tratamento que, com o uso de hormônios, consegue simular a gestação para estimular a produção do leite materno. O tratamento é mais comum entre mães adotivas e casais de mulheres em que a mãe não gestante quer dividir a amamentação com a gestante.

Quase um mês depois do aniversário em que conheceu o casal, Fernandez ouviu das médicas que amamentar era possível e já tinham administrado o tratamento em outras duas mães trans.

Ela conseguiu amamentar, mas foi atacada ao compartilhar a experiência nas redes sociais. Também recebeu muitas perguntas de mulheres que queriam saber mais sobre o tratamento.

"Quando eu expus a minha lactação foi um boom. Todo mundo queria entender", conta. "Me chamaram de pedófila e disseram que o meu leite não era de verdade. Postei o último vídeo há dois anos e até hoje recebo esses comentários."

O estresse afetou a produção do leite após a primeira semana e ela teve que recorrer a uma sonda para suplementar o volume. Foram três meses de amamentação até ela começar a alternar com mamadeiras.

A diferença da lactação induzida está principalmente nos anticorpos e nas calorias do leite, afirma Izabella Tamira Galdino, endocrinologista pediatra pela Universidade Federal do Ceará.

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Gestantes produzem um leite "personalizado" para cada bebê, mas não existem malefícios comprovados da indução no desenvolvimento infantil, diz Galdino. Na maioria das vezes, o volume de leite produzido por não gestantes acaba não sendo suficiente, exigindo uma amamentação mista, que alterna fórmula com o peito.

"Mesmo sem uma amamentação exclusiva, o vínculo da amamentação mista é favorável para o desenvolvimento emocional do bebê", afirma a médica. "A fórmula não consegue imitar 100% o leite humano, e por mais que os anticorpos [da lactação induzida] não sejam 'personalizados', eles estão ali."

A amamentação pode ser simbólica para casais trans heterossexuais. O homem trans que gesta pode não querer amamentar por disforia de gênero —quando uma pessoa não se identifica com gênero associado ao seu sexo biológico.

Características físicas ou certos atos, como ter mamas ou amamentar, podem angustiar os pais gestantes, e levar as parceiras a assumirem a amamentação.

Isis Broken, 30, mãe de Apolo, 3, quis tentar a lactação após seu parceiro decidir que não iria fazê-lo por causa da disforia. Mas violências, principalmente verbais, durante o pré-natal tornaram o processo difícil.

Broken conta que durante uma das consultas uma médica disse a ela "se você é mulher, me mostre sua vagina". Em outra ocasião, ligou para treze clínicas para marcar exames e desligaram em sua cara. "Nós não conseguíamos nos conectar com o Apolo. Estávamos tentando ficar vivos", disse Broken.

A lactação induzida para mulheres trans exige a hormonização, e Broken nunca havia se hormonizado. O processo levou a um desenvolvimento doloroso dos ductos mamários. "Muitas coisas aconteceram no pré-natal. Eu continuei o tratamento, mas em um lugar muito solitário", diz. "Eu não queria que as pessoas soubessem o que estava acontecendo comigo porque eu achei que, naquele momento, meu parceiro era quem precisava ser assistido, não eu."

A amamentação também foi dolorosa e Broken desistiu após duas semanas. A lactação induzida exige um bloqueio de testosterona, hormônio que inibe a produção do leite, e a administração de estrogênio e progesterona, que simulam uma gestação, explica a ginecologista e obstetra Ana Thais Vargas.

A liberação de prolactina, hormônio que induz a produção do leite, também é estimulada. Depois, a progesterona e o estrogênio são interrompidos, simulando o nascimento de um bebê. A paciente faz então uma estimulação das mamas por meio de bombas elétricas de sucção, que mimetizam um recém-nascido.

"O principal desafio do tratamento é social. Quando eu e minha colega começamos a fazer esse trabalho com trans e travestis —somos mulheres brancas cisgênero— sofremos muitos ataques de pessoas transfóbicas falando absurdos", diz Vargas.

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Mesmo com os desafios, Erika Fernandez afirma que amamentaria de novo, mas não romantiza a demanda do processo. "Eu não dormia, não tomava banho. A hora que ele chorava era peito na boca", diz. "Realmente é uma conexão, sabe? A gente trocava energia em cada mamada, cada troca de olhares."

Isis Broken disse que a experiência transformou seu entendimento como mãe trans. Ela é contra a própria hormonização e hoje vê que seu impulso de querer amamentar vinha em parte de maternidades cisgêneras à sua volta. "Amamentar é só um item na lista enorme em meio ao que significa ter um filho. A minha maternidade não é cisgênera, então eu acho que tenho que criar novas narrativas."

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