A demora dos governos em dar uma resposta efetiva ao problema habitacional decorrente das enchentes no Rio Grande do Sul levou moradores e empresários locais a se organizarem em grupos ou associações para tentar acelerar a construção de moradias.
Em cidades do Vale do Taquari, uma das regiões mais devastadas pela água, movimentos criados após a catástrofe de maio de 2024 buscam mobilizar recursos e materiais de construção por meio de doações.
Algumas iniciativas, porém, esbarram nos mesmos desafios que travam a entrega de casas pelo poder público, como a falta de um terreno seguro para erguer novas moradias.
Até o início de setembro, o governo federal havia entregado só nove casas por meio da compra assistida e mais 367 contratadas antes das catástrofes, mas que beneficiaram famílias atingidas. Outras 102 moradias temporárias foram instaladas pelo governo estadual.
De lá para cá, o governo federal conseguiu avançar na compra assistida, mas ainda de forma tímida. A Caixa informou que há 2.310 imóveis disponíveis e 1.975 beneficiários aptos a escolherem uma casa por meio da compra assistida. No entanto, até 23 de outubro, apenas 224 imóveis foram selecionados e estão com status de adquirido ou em fase final de aquisição, segundo o Ministério das Cidades.
O governo estadual, por sua vez, entregou mais 42 moradias temporárias, chegando a um total de 144. Outras 48 devem ser inauguradas nos próximos dias, segundo a Secretaria de Habitação e Regularização Fundiária do estado. Nenhuma casa definitiva foi entregue até o momento, porque a maioria dos terrenos ainda está em preparação, com algumas construções iniciadas em Encantado e Santa Tereza, também no Vale do Taquari.
A entrega efetiva não chega nem perto das necessidades, já que 10,7 mil casas foram destruídas e 190 mil ficaram danificadas desde setembro de 2023, quando houve a primeira de três enchentes que devastaram o estado. Os dados foram informados pelos municípios e reconhecidos pela Defesa Civil Nacional.
É esse gargalo que os movimentos buscam suprir, mas nem todos estão tendo pleno sucesso.
Em Muçum, a 154 km de Porto Alegre, o empresário Márcio de Lazari se confessa um tanto frustrado com as dificuldades para angariar os R$ 6 milhões calculados como necessários para comprar um terreno em área segura e viabilizar a construção de casas.
Ele preside a Associação Recupera Muçum, cujo objetivo é auxiliar cerca de 800 famílias do município, que teve até o cemitério arrasado pela água. Mais de 80% da população foi atingida pelas enchentes, e muitos não se enquadram nos critérios de idade (pois são idosos) ou renda para receberem financiamento ou ajuda dos programas federais.
A campanha de arrecadação dos recursos começou logo em maio. Metade do dinheiro (R$ 3 milhões) seria usado para a compra do terreno, e o restante, para a construção de uma infraestrutura inicial. No entanto, a associação conseguiu até agora, entre repasses efetivos e promessas, menos de 20% do valor almejado.
A agonia é grande porque, segundo Lazari, a entidade recebeu a oferta de duas doações de casas que, juntas, somam 110 novas moradias. Sem terreno, no entanto, não há como avançar na entrega, e há o risco de o município perder a reserva das unidades habitacionais.
"Frustrante é. Deixa a gente numa agonia, sabendo que tem as casas, todo mundo querendo doar e não tem terreno. Saber que está tão perto da gente e tão longe ao mesmo tempo… a gente tenta se motivar para não desistir", afirma, em tom de desabafo.
Ele reconhece que R$ 6 milhões é um valor alto, mas faz uma comparação com imóveis de alto padrão. "Quantas pessoas não têm uma casa de R$ 1 milhão? Se for pensar, são seis casas de R$ 1 milhão. Com esse valor, resolve o problema de uma cidade."
Enquanto a entidade não consegue os recursos, as áreas no radar para aquisição são mantidas sob sigilo para evitar que a alta de preços e a especulação imobiliária os afaste ainda mais do objetivo.
Segundo Lazari, a reconstrução da cidade é essencial para conter o êxodo de uma população que já era pequena (4.694 habitantes) e padeceu com as três enchentes ocorridas desde setembro do ano passado. Muitas famílias perderam tudo mais de uma vez e desistiram da vida no município, que agora tem ruas vazias, casas abandonadas e comércio enfraquecido.
Em Cruzeiro do Sul, a 123 km da capital, o movimento Reconstruir Cruzeiro do Sul também começou buscando terrenos para aquisição, mas mudou de estratégia quando percebeu que precisaria levantar valores significativos. Quase 50% da população de 12,6 mil habitantes foi afetada pela enchente, e mais de mil casas foram destruídas.
O grupo identificou também que algumas famílias já tinham uma opção segura de terreno, dada a maior oferta de áreas no município, mas precisavam de ajuda para arcar com os custos da construção. Ao recalcular a rota, o movimento conseguiu dar maior tração às ações.
"Fizemos uma primeira captação de formulários, depois uma segunda, e temos 184 famílias cadastradas. Em torno de cem delas já estão construindo", afirma Eduardo Hendler, representante da área de comunicação do movimento.
Segundo ele, o apoio se dá por meio da compra de materiais de construção, exclusivamente para famílias que já possuíam ou conseguiram adquirir ou financiar terrenos com elevação acima dos 34 metros —a enchente chegou à cota de 33 metros no município.
"Temos uma arquiteta em contato com as famílias. Ela identifica a maior necessidade. Tem família que precisa de tijolo, outra de cimento, ferro. Fazemos o intermédio direto com o fornecedor, priorizando fornecedores locais", explica. Quando apoiadores preferem doar materiais diretamente, como portas e telhas, o movimento atua na distribuição dos artigos.
Hendler diz que cada família recebe uma ajuda equivalente a R$ 5.000, em média. Pouco mais de R$ 400 mil já foram destinados por meio da mobilização.
"A gente gostaria de fornecer todo o material necessário às famílias, só que infelizmente a verba que a gente tem não é suficiente para isso. Tem famílias que ainda não começaram a construir, então não adianta zerar o caixa do movimento", afirma.
Segundo ele, a sinalização recente de uma nova doação pode ampliar a capacidade de repasse. Um novo formulário de cadastro também já foi aberto, para permitir o credenciamento de novas famílias. A meta do movimento é finalizar pelo menos 50 casas até o fim de 2024.
"Cruzeiro não tem problemas de área. Existem áreas disponíveis, sem ser por um valor absurdo. O que falta é essa celeridade [que falta ao poder público]", avalia Hendler.
A série Reconstrução Gaúcha, publicada mensalmente no site da Folha, mostra a tentativa de reconstrução do Rio Grande do Sul após as enchentes de proporções históricas que começaram em abril deste ano e atingiram centenas de municípios do estado. As reportagens, publicadas no fim de cada mês, mostram os desafios em áreas como agropecuária, infraestrutura e setor imobiliário e o empenho na restauração dessas atividades. As enchentes deixaram 183 mortes, além de 27 desaparecidos, segundo o governo estadual.