O Governo de São Paulo sediou na Secretaria de Estado dos Direitos da Pessoa com Deficiência o 2º Congresso Internacional Vida e Família, que prega o fim do direito ao aborto mesmo em casos de estupro, risco de morte para a gestante e anencefalia, condições que são previstas na legislação.
O evento, que aconteceu entre os dias 28 e 30 de março, teve participação do secretário da Casa Civil da cidade de São Paulo, Enrico Misasi (MDB), que afirmou que desejava ressaltar a proximidade da gestão municipal com os ativistas anti-aborto. A participação do secretário não consta na agenda oficial.
"Queria só realmente dar um abraço, deixar também a proximidade da gestão municipal, do prefeito Ricardo Nunes, da nossa equipe", afirmou Misasi.
"A gente tem desafios sérios e bastante complexos aqui, na cidade de São Paulo, mas deixar esse canal de conversa, de diálogo e de proximidade para que a gente possa juntos pensar estratégias eficazes de defesa da vida aqui no âmbito da cidade de São Paulo e no nosso país", disse o secretário em discurso entre as palestras da presidente do movimento Brasil Sem Aborto, Lenise Garcia, e do influencer de direita Italo Marsili, na tarde de sexta-feira (28).
A secretária Angela Gandra, titular da pasta de Relações Internacionais da cidade, também aparecia como confirmada, mas não compareceu durante o período em que a reportagem acompanhou o Congresso. Nas redes sociais da secretária, não há menção ao evento.
O prefeito Ricardo Nunes está no centro de uma disputa em torno do serviço de aborto legal do Hospital Vila Nova Cachoeirinha, fechado pela gestão municipal desde dezembro de 2023. No início de março deste ano, a Justiça de São Paulo determinou a reabertura do centro de referência.
A Folha mostrou que a Prefeitura de São Paulo realiza 15% dos abortos legais do município desde o fim do serviço, contra 29% quando o Vila Nova Cachoeirinha estava em funcionamento.
Além da gestão Nunes, o CFM (Conselho Federal de Medicina) também enviou representantes, que palestraram no sábado (29).
Raphael Câmara Medeiros Parente, ex-presidente do órgão e conselheiro pelo Rio de Janeiro, e Francisco Cardoso, conselheiro por São Paulo, usaram as palestras para defender a resolução do CFM que proibiu o uso de assistolia fetal em casos de gestação decorrente de estupro com mais de 22 semanas, e para defender a objeção de consciência médica.
Cardoso é conhecido por ter defendido o uso de cloroquina para tratar Covid-19, uma prática comprovadamente ineficaz. Câmara, por sua vez, foi secretário durante a gestão Damares Alves à frente do Ministério dos Direitos Humanos do governo Jair Bolsonaro.
O evento foi organizado por entidades anti-aborto como a Rede Colaborativa Brasil, associação que reúne as chamadas "casas de acolhimento de gestantes". Inspiradas nos "crisis pregnancy centers" surgidos nos Estados Unidos, essas organizações atuam nas redes sociais se passando por fornecedores de medicamentos abortivos ou clínicas para atrair mulheres em busca do procedimento e convencê-las a manter a gestação.
Estava no evento, por exemplo, a Brazil4Life International, grupo que mantém páginas de "isca" para gestantes em busca de aborto, e cuja atuação a Folha mostrou em 2023.
Com algumas dezenas de participantes, o congresso não chegou a ocupar todos os assentos disponíveis no auditório da secretaria, localizada no Memorial da América Latina, na Barra Funda, na zona oeste de São Paulo.
Durante as palestras, os participantes discutiram estratégias para aprovação de projetos no Legislativo que restrinjam o direito ao aborto nos casos previstos em lei, debateram as ações sobre o tema que tramitam no STF (Supremo Tribunal Federal) e criticaram ministros como Alexandre de Moraes, que suspendeu a resolução do CFM a respeito da assistolia fetal, e também impediu o Cremesp (Conselho Regional de Medicina de São Paulo) de solicitar prontuários de pacientes que realizaram o procedimento.
A deputada Chris Tonietto (PL-RJ) afirmou no evento que o "aborto não conserta o estupro", e que, portanto, não havia motivo para autorização da prática nesses casos.
Outro tema que mobilizou atenções foi a determinação da Justiça paulista para que o Hospital da Mulher, principal centro de referência para o aborto legal no estado de São Paulo, realize a interrupção em casos de "stealthing", a retirada de preservativo sem consentimento. A decisão veio depois que a Folha mostrou que o hospital estava negando o procedimento.
Tonietto e a vereadora Sonaira Fernandes (PL-SP), ex-secretária de Políticas para Mulher do estado, afirmaram que a decisão deve ser revertida.
Também houve palestras religiosas, como a do cardeal dom Odilo Scherer, arcebispo de São Paulo, além da apresentação de um coral de adolescentes. Entre os palestrantes internacionais, estava Bradley Mattes, fundador do Life Issues Institute, grupo anti-aborto dos Estados Unidos.
Procurados, o Governo de São Paulo, o CFM e a Casa Civil da Prefeitura de São Paulo não responderam aos questionamentos sobre o uso do espaço da secretaria para o evento e sobre o envio de representantes até a publicação desta reportagem.