Fim da energia a carvão no Reino Unido é marco ambiental, mas deixa vazio cultural e trabalhista

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É impressionante a visão do viajante que desembarca na estação de trem vizinha à usina elétrica de Ratcliffe-on-Soar. Coladas à plataforma ficam oito imensas torres de resfriamento que, com 114 metros de altura cada uma, por décadas foram um símbolo do poder da indústria britânica de carvão e motivo de orgulho para moradores da região de Nottinghamshire, no centro da Inglaterra.

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"Quando passávamos por aqui, meu pai dizia que essa era a fábrica de nuvens", diz Charlie Simpson, 35, professora assistente da Universidade de Nottingham. "Elas sempre funcionaram como um ponto de referência quando estamos indo ou voltando para casa."

Desde o dia 30 de setembro, a produção de "nuvens" —na verdade, a fumaça produzida na geração de energia a carvão— terminou definitivamente.

Com o desligamento das fornalhas de Ratcliffe-on-Soar, o Reino Unido se tornou o primeiro país do G7 (grupo das nações mais desenvolvidas do mundo) a abandonar completamente o uso de carvão para fins energéticos —e encerrou uma história de 142 anos, que marcou a cultura, a política e o trabalho do país.

Desde 1882, ano da abertura da primeira usina de carvão do mundo, em Londres, até setembro de 2024, estima-se que o Reino Unido tenha utilizado 4,6 bilhões de toneladas de carvão e emitido cerca de 10,6 bilhões de toneladas de dióxido de carbono na atmosfera, segundo dados da organização Carbon Brief.

A usina de Ratcliffe-on-Soar foi aberta em 1968, com potência de geração de 2.000 megawatts, e chegou a ter 3.000 funcionários. Depois do fechamento, a empresa alemã Uniper, que administra o local, afirma que ficaram na planta cerca de 150 funcionários, trabalhando na desativação.

O plano de encerramento caminha desde 2016, quando o governo anunciou que todas as usinas a carvão seriam fechadas até 2025. A meta foi reduzida para 2024 às vésperas da COP26, conferência do clima da ONU realizada em Glasgow, na Escócia, em 2021.

Desde 2015 já não existem minas de carvão para energia no Reino Unido, que passou a importar a matéria-prima da Colômbia, da África do Sul e de países da União Europeia.

"O Reino Unido vem planejando se descarbonizar há um bom tempo", afirmar John Underhill, diretor do centro de transição energética da Universidade de Aberdeen. Ele afirma, porém, que é preciso ter cuidado ao abrir mão de fontes de energia. "Nos últimos anos, nós ainda dependemos em algumas ocasiões da energia gerada pelo carvão."

Nos últimos 12 meses, 24% da energia britânica foram gerados por gás natural, enquanto 43% vieram de energias renováveis, como eólica e solar. O carvão representou 1% do total. O Reino Unido tem como meta descarbonizar totalmente o setor de energia até 2030.

Segundo Underhill, agora é preciso fortalecer a matriz energética para evitar possíveis problemas por causa de imprevistos. Além disso, diz ele, é preciso tomar cuidado com as comunidades locais que giram em torno de indústrias poluentes, como gás e aço.

Ainda existe exploração de carvão no Reino Unido para a produção de aço. Um dos exemplos é a mina de Aberpergwm, no sul do País de Gales, que segundo o Coal Action Network produz 70% do material utilizado na siderúrgica de Port Talbot, uma das mais importantes da região.

"Uma solução para descarbonizar seria simplesmente fechar a indústria local, o que jogaria a pegada de carbono do país no chão, mas, sem o devido cuidado, pode acarretar outros problemas, como jogar na pobreza setores da sociedade", avalia Underhill. "Foi isso que este país fez com o carvão a partir dos anos 1980."

O professor escocês faz alusão a uma das principais consequências do declínio da indústria de carvão a partir da segunda metade do século 20: um vazio cultural e trabalhista que impacta regiões inteiras e afeta até o comportamento eleitoral.

"Todos na minha família foram mineiros até o meu avô, que trabalhou até as minas fecharem", diz a professora Charlie Simpson, observando as torres enquanto acompanha um grupo de alunos de arquitetura numa visita ao entorno da usina desativada.

"Meu avô ainda tem uma comunidade em torno disso, um orgulho. Os olhos dele brilham quando fala da mineração", conta ela, criada em Nottingham, a maior cidade do condado de Nottinghamshire.

O sentimento de orgulho ligado à mineração não é incomum, diz Keith Gildart, professor de história da Universidade de Wolverhampton.

Embora o trabalho nas minas fosse perigoso, a vida ligada ao carvão proporcionava salários razoáveis e estabilidade, além de espaços sociais como o sindicato e os "working men's clubs", clubes de trabalhadores comuns em áreas industriais desde o século 19, explica Gildart, que trabalhou como mineiro entre 1985 e 1992.

Ele entrou no setor logo após a greve dos mineiros de 1984, considerada um ponto de inflexão na história do carvão. A poderosa União Nacional dos Mineradores (NUM, na sigla em inglês) travou uma queda de braço de quase um ano com a então primeira-ministra conservadora Margaret Thatcher contra o fechamento previsto de minas.

O governo, prevendo o confronto, tinha estocado grandes quantidades de carvão, tirando o poder de pressão dos trabalhadores —que nos anos 1970 tinham ganhado greves ao causar apagões por falta de carvão para geração de energia.

Derrotados, os mineiros viram o número de minas fechadas saltar e a produção cair pela metade de 1986 a 1995. O setor que chegou a empregar quase 1,2 milhão de pessoas, em 1920, não tinha 1.000 trabalhadores em 2023. Segundo Gildart, o problema é que muitas vezes nada foi colocado no lugar.

"Cidades e regiões inteiras foram deixadas definhando", diz. Ele afirma que faltam políticas públicas direcionadas à revitalização de áreas tradicionalmente carvoeiras, como o sul do País de Gales e o norte da Inglaterra.

Gildart avalia que a falta de perspectivas é uma das explicações para o crescimento de grupos de ultradireita em regiões de antigas minas. O Reform UK, partido à direita dos conservadores no compasso político britânico, conseguiu quatro cadeiras no parlamento em 2024.

Entre os eleitos está Lee Anderson, um ex-mineiro de Nottinghamshire que enveredou pela política com discurso anti-imigração. "Anderson é uma representação do que está acontecendo: um ex-sindicalista que se voltou para os conservadores e agora está num partido populista de direita", diz o professor.

Em Ratcliffe-on-Soar, o plano das autoridades é que o terreno seja reaproveitado para geração de energia limpa. "Ainda não sabemos exatamente o que deve ser feito, mas a energia é a força vital da região", diz o deputado James Naish (Trabalhista), representante do distrito eleitoral que engloba a usina no parlamento britânico.

Uma nova planta de energia limpa pode revitalizar a região e trazer mais empregos qualificados, afirma Naish.

Para isso, as oito torres de resfriamento devem ser demolidas, o que tem gerado críticas da comunidade local. Entre as vozes que defendem a manutenção da estrutura está a aposentada Mary Weston-Webb, 71, que vê as torres da janela de sua cozinha em Red Hill Marina, vilarejo vizinho à usina.

"Não entendo por que não preservá-las como uma parte da nossa história", diz ela, que mora na comunidade desde 1982.

Naish, por sua vez, diz que as autoridades levam em conta os desejos da população, mas que o custo para manutenção das torres seria elevado. "Acho que é importante que a população entenda que é um passo enorme para o Reino Unido, e que todos nós devemos estar orgulhosos."

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