Bem-humorada, Fernanda Montenegro recorre ao compositor e pianista Johnny Alf para falar sobre o sucesso da temporada da sua leitura dramática em São Paulo. "Fernanda Montenegro Lê Simone de Beauvoir" ficou um mês em cartaz no teatro Raul Cortez, no Sesc 14 Bis, sempre com ingressos esgotados e filas de espera.
"Aconteceu esse inesperado", a atriz comenta para, em seguida, citar um trecho da canção "Eu e a Brisa", de Alf. "O inesperado faça uma surpresa e traga alguém que queira te escutar. E junto a mim, queira ficar", diz, sorrindo.
Um dos mentores da bossa nova, Alf nasceu no Rio de Janeiro, mas passou a maior parte da sua carreira na capital paulista.
No dia 18 de agosto, um domingo, a atriz volta a São Paulo para uma única apresentação no auditório do Ibirapuera. Com entrada gratuita, essa será a sessão com o maior público de "Fernanda Montenegro Lê Simone de Beauvoir". A plateia do anfiteatro, com capacidade para quase 800 lugares, poderá vê-la, como de praxe; no gramado da área externa, com capacidade para cerca de 15 mil lugares, o público vai acompanhá-la por meio de um telão.
Será uma nova oportunidade de ouvir trechos de "A Cerimônia do Adeus" e de outras obras da filósofa e escritora francesa Simone de Beauvoir na voz de Fernanda.
Vale lembrar que não se trata de uma peça tradicional —no palco, sob uma luz suave, a atriz está acompanhada apenas de uma mesa, uma cadeira, um copo d'água e um bloco de papéis.
Como conta ao repórter, por videoconferência, há uma passagem da leitura da qual Fernanda gosta especialmente. A certa altura, ela diz "a impressão que eu tenho é de não ter envelhecido, embora eu
esteja instalada na velhice".
Algumas frases depois, ela conclui "o que eu sempre quis foi comunicar da maneira mais direta o sabor da minha vida, unicamente o sabor da minha vida". "Acho que eu consegui fazê-lo; vivi num mundo de homens guardando em mim o melhor da minha feminilidade. Não desejei nem desejo nada mais do que viver sem tempos mortos."
Quando conheceu o pensamento de Beauvoir por meio da leitura de "O Segundo Sexo", Fernanda tinha só 20 anos. No final da década de 1940, sua visão de mundo virou do avesso. "Foi um acontecimento. A guerra tinha acabado havia quatro, cinco anos, e tudo estava se refazendo dentro de um outro sistema. E veio essa consciência posta organizadamente, buscando a estrutura desse feminismo", lembra.
"É cerebral como todo bom pensamento francês. Eu acho que a humanidade vai do coração para o cérebro, mas o francês não, é do cérebro para o coração", afirma a atriz.
Tamanha admiração por Simone de Beauvoir leva a uma pergunta. A atriz se considera uma feminista? Fernanda não titubeia. "Eu me considero."
Para ela, feminismo implica, sobretudo, igualdade entre mulheres e homens. "Outro ganho humanista proposto por Beauvoir está na seguinte frase. 'Não espero que as mulheres tomem o poder dos homens para si mesmas porque isso não mudaria nada.' É uma cabeça fantástica. E ela acrescenta 'que as mulheres mudem não só a situação das próprias mulheres, mas que mudem o mundo'. A gente tem que ler isso de joelhos."
Praticamente metade do público que já a viu no Sesc 14 Bis era formado por jovens, segundo a atriz. "De repente, acontece com essa moçada que foi ouvir essa leitura o que aconteceu comigo quando eu li o 'O Segundo Sexo'. O queixo caiu", afirma.
Sua visão do feminismo, no entanto, parece se distanciar de ativismos ou posições extremas. Nesse momento da entrevista, a atriz se lembra do ator e diretor Fernando Torres, com quem foi casada por 56 anos. "Eu tive um homem muito generoso comigo, muito sensível. Se houve algum desassossego naquela alma, eu não percebi."
Com a experiência de quem já viveu nove décadas, ela complementa que "é preciso dizer que nem todo homem é um assassino em potencial". "Não pode, não é verdade. Já caminhamos e caminhamos bem." E antes de abordar um outro tema, Fernanda diz, com voz firme "não quero fazer disso um discurso feminista". "Eu gostaria que isso ficasse claro."
De acordo com Eduardo Tracanella, diretor de marketing do Itaú Unibanco, que patrocina o evento, a apresentação no Ibirapuera é uma homenagem aos 95 anos da atriz, a serem completados em outubro, e aos 80 de carreira. Fernanda começou ainda aos 15 anos, com interpretações em radionovelas. É ainda, segundo o executivo, uma celebração dos cem anos da marca, já que o Unibanco foi fundado em 1924.
"No final da leitura, há um momento de reflexão, em que Fernanda costuma falar sobre a plenitude da vida, sobre viver sem tempos mortos", afirma Tracanella.
O que é para a atriz viver sem tempos mortos? "Estar em estado de ação. Não obsessiva, não frenética, não competitiva. É ser, é ser. É sentar quando tem que sentar, dormir quando tem que dormir. É não abrir mão de mais algum tempo", afirma.
Como o tempo é precioso, Fernanda vai participar das filmagens da comédia "Velhos Bandidos" semanas depois da leitura no Ibirapuera. O filme é dirigido pelo filho dela, Cláudio Torres, e também tem nomes como Ary Fontoura no elenco.
Deixar de atuar, da mesma forma, está fora dos planos da dama do teatro brasileiro. "Eu tenho uma outra leitura que também faz sucesso, 'Nelson Rodrigues por Ele Mesmo'. Há uma frase dele que pus no final da apresentação. 'Aprendi a ser o máximo possível de mim mesmo.'"