Aos 24 anos, a paulista Regina Cecília Maria Diva Nolf Nazário bateu de frente com a Justiça do estado de São Paulo pelo direito de votar nas eleições presidenciais de 1922. A então estudante de direito usou seus conhecimentos sobre a Constituição para abrir uma discussão inovadora sobre os direitos políticos das mulheres no país. A batalha rendeu um livro, considerado por ativistas da época e especialistas atuais um legado para o movimento sufragista brasileiro.
"As linhas por mim escritas foram traçadas ao correr da pena, nos raros momentos de folga entre estudos e trabalhos. Na simples intenção de divulgar melhor o que se há dito a respeito e servir quiçá a nobre causa do feminismo que, no Brasil, há de ser brevemente vencedora, para a glória da nossa pátria e o respeito a suas magnas leis", escreveu Nazário na introdução do livro "Voto Feminino e Feminismo: Um Ano de Feminismo entre Nós", publicado em 1923.
Nazário nasceu em Batatais, São Paulo, no dia 22 de novembro de 1897. Filha da brasileira Maria Rita de Paula Pinto Nazário e do belga Louis Yvon Léon Nolf d’Avelghen, morou na Bélgica dos 10 aos 20 anos, onde o pai era dono de um serviço de torrefação e exportação de café brasileiro. Em meio à Primeira Guerra Mundial, a família voltou ao Brasil. Nazário entrou na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo , no Largo São Francisco, em 1922.
No mesmo ano, ela tentou tirar o título para as eleições presidenciais. Teve o apoio de seu pai, que pediu informações sobre como registrar novos eleitores. Mas o juiz da junta eleitoral da Sé negou o pedido da estudante, argumentando que, com base nos costumes, as mulheres tradicionalmente não participavam das eleições, conta a historiadora Mônica Karawejczyk em um artigo na revista Histórica, do Arquivo Público do Estado de São Paulo.
"A mulher respeitada era a mulher casada. Um dos argumentos que se usava era: ‘qual o sentido de ter voto feminino se o voto da mulher vai replicar o do marido? É a mesma coisa que fazer uma eleição duas vezes’", diz a pesquisadora de história do direito Laila Maia Galvão. "Eles não conseguiam conceber a ideia de uma mulher intelectualmente independente."
O direito civil da mulher em pautas como casamento e divórcio também era atrelado a esses ideais, diz Galvão. Com a conquista do voto, abriu-se caminho para as outras conquistas.
Insatisfeita com a resposta do juiz, a estudante entrou com um recurso. A Constituição de 1891 não proibia as mulheres de votarem, falando apenas em sufrágio direto. O conhecimento de Nazário em direito constitucional foi fundamental para o caso, trazendo uma argumentação inovadora, diz Galvão. Até então, o movimento sufragista tinha uma retórica mais baseada em política.
"A argumentação dela, muito jurídica por ela ser bacharel em direito, chama muita atenção", diz Galvão. Essa retórica e o livro, são, para a especialista, os principais legados da sufragista. "Ela teve a sagacidade de organizar o material, ter o registro e algo que pudesse espalhar, ser lido por outras pessoas, inspirar outras pessoas."
Mesmo com o recurso, o pedido da estudante foi negado. Em seu livro, ela descreve —aos 26 anos— o acontecido. Também conta os debates sobre o direito ao voto das mulheres na época e compila reportagens sobre direitos das mulheres na política brasileira.
Em uma carta a Nazário em dezembro de 1923, a ativista Bertha Lutz, peça chave do movimento sufragista brasileiro, diz que o livro "é um belo serviço prestado à causa e de grande utilidade para a sua documentação", conta a historiadora Mônica Karawejczyk em seu artigo.
A especialista descreve a obra como "uma referência obrigatória a todos que desejam pesquisar o movimento feminista brasileiro". O livro foi republicado em 2009 pela editora Imprensa Oficial, do Governo de São Paulo.
A luta pelo voto feminino no Brasil dos anos 1920 era um movimento majoritariamente de mulheres brancas da classe média e alta, com ativismo influente por parte da Federação Brasileira para o Progresso Feminino, da qual Nazário era afiliada em São Paulo, conta a especialista em ciências sociais Lenina Vernucci da Silva em sua tese de mestrado pela Unesp (Universidade Estadual Paulista).
"A Diva tinha toda essa condição social de se posicionar, de escrever nos jornais, de estudar no Largo São Francisco e se colocar como uma integrante daquele ambiente. Não há dúvida que era um movimento de classe média alta, de mulheres que haviam estudado, que sabiam ler e escrever", diz a pesquisadora Laila Maia Galvão.
O Código Eleitoral de 1932 expressou o direito de voto facultativo para as mulheres, que em 1934 se tornou obrigatório para as que exerciam cargos públicos remunerados, de acordo com o Centro de Memória Eleitoral do TRE-SP (Tribunal Regional Eleitoral). A obrigatoriedade para todas veio com a Constituição Federal de 1946, junto com o direito de concorrência a cargos eletivos —mais de 20 anos depois de Nazário brigar por seu título.
Depois de se formar na faculdade, a estudante se casou com um colega de turma, Luiz Duarte Ventura, de quem adicionou o sobrenome ao seu. Ela e o marido foram diretores do Instituto Moderno, que oferecia cursos de datilografia e taquigrafia. A escola ficava na praça João Mendes, no centro de São Paulo.
Não há registros sobre a autora que falem da sua vida depois desse período, de acordo com Lenina Vernucci da Silva. A ativista morreu em 1966.
"A Diva veria com bons olhos esse processo de uma presença feminina muito maior na área do direito atualmente —a conquista do voto, de vários direitos ao longo do século 20—, mas provavelmente ainda estaria batalhando por outras causas", diz Galvão.
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