Em 'Fusão', artista Gustavo Magalhães testa os limites entre a forma e a imagem

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Em tinta preta, um mapa-múndi está desenhado em duas mãos abertas. Seus contornos se confundem com a textura e os tons da pele, que toma os contornos continentais para si. A suavidade das pinceladas permite que as dobras cutâneas adicionem à representação espacial.

Pela metamorfose entre a forma e a imagem sobre ela, "diáspora", de 2023, sintetiza "Fusão", mostra individual de Gustavo Magalhães em cartaz na Caixa Cultural São Paulo, e que chega à unidade de Curitiba no próximo mês.

Nascido no interior do Paraná, na cidade de Goioerê, o artista pinta desde 2013 e ressignifica imagens e suportes físicos —esses geralmente de origem precária. Isso o permite revisitar a historiografia da arte e variadas linguagens, além de dialogar com questões de identidade, raça e violência.

"A maioria dos materiais em exposição foram achados na rua, doados por amigos ou reaproveitados do meu próprio ateliê. Em várias obras feitas em papel, você consegue perceber desenhos e pinturas antigas, que foram reapropriadas para se tornar novos trabalhos. As peças não têm a minha ciência na elaboração dos formatos. Eu encontro elas da forma como estão postas", diz Magalhães.

Ele explica não haver uma hierarquia entre as imagens e o seu suporte. "Em 'pawpaw rod', a gente vê um furo. Ele se encontra no peito do personagem, mas não é um furo figurativo. Temos um furo material e é possível ver através dessa peça. É uma cisão não apenas na figura, mas no corpo do trabalho", afirma o artista.

Magalhães também cita "para dorival caymmi", feita sobre um pedaço de madeira ondulado, em formato pouco usual. "Não consigo entender o que essa peça era. Ela replica essas ondas, possui esse formato que remete ao mar quando posta a imagem desse pescador sobre ela. Não à toa o título faz referência a Dorival Caymmi. 'Canções Praieras', toda a sua discografia de trabalhos sobre o mar. Uma ode ao mar e aos pescadores."

Esse mesmo diálogo entre as bases e as intervenções do artista se estende ao espectador. A exposição rompe com a ideia de um observador passivo e o deixa livre para formular novos significados.

"Podemos pensar o conceito de 'Fusão' como um processo de simbiose: a união de duas ou mais partes que se extinguem para gerar uma nova possibilidade, uma mudança", diz a curadora Ayala Prazeres em seu texto de abertura. Além de romper com materiais considerados nobres, a mostra se afasta da pintura aprisionada às paredes.

Suspensas pelo salão, muitas das peças convidam o público a observar seus versos. Faces não contempladas pelos pincéis de Magalhães estão à mostra, revelando traços de uma temporalidade anterior às transformações.

"Existe uma vida antes de as peças chegarem até a sala expositiva. Essa vida fala de um tempo programado, desses objetos programados para durar até um certo período. Madeiras de armário, de cama, de qualquer coisa que tinha um tempo específico", diz a curadora.

Magalhães diz que seu acervo é formado por imagens que lhe alcançaram por acaso. Muitas pertencem ao seu universo cultural, saídas de objetos como músicas, filmes e séries. É o caso de "jpeg.", que retrata o rapper americano Jpegmafia.

"Eu penso a imagem em sua forma abstrata, nas características formais que elas apresentam. Em "jpeg.", a imagem foi obtida a partir de um frame de um vídeo do Jpegmafia. Ela é um frame descontextualizado para se tornar uma pintura que discute a relação da cor com a sombra nessa pele retinta", diz Magalhães.

Segundo o pintor, o contraste da obra revela tonalidades próprias do arquivo digital, formados por pixels, que conferem textura e mancham imagens virtuais.

Esse mesmo estado de trânsito, de partículas que vão de um estado a outro, transparece em um de seus "sem título", em que um homem negro se limpa com um filete de água. Os traços líquidos ocultam o rosto do indivíduo e sugerem movimento.

Magalhães ainda explora cânones e simbologias históricas, decompondo bases elementares para reconstruir em suas obras. É o caso de "fé", que reproduz um formato abobadado, comum a representações sacras, e "zumbi ou nada nunca acaba", que relê uma antiga estátua, homenagem ao líder quilombola, do centro histórico de Salvador.

"No caso de 'fé', eu me aproprio de um cânone que está ligado a representações religiosas, mas existe uma certa atualização. A religião está ali representada e nós vemos esse crucifixo nas costas desses dois personagens. A religiosidade se sobrepõe à própria configuração desse suporte", diz ele. Tudo depende da mesma relação simbiótica.

"Quando a pintura está feita, a imagem se torna indissociável do seu suporte. Esse objeto se torna um corpo que atua a partir dessas duas instâncias. É uma ecologia da qual o espectador também se torna parte."

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