Como seria o planeta sem a diversidade de animais, plantas e microrganismos? Mais sem graça e menos funcional, com certeza. Do ponto de vista da ciência, porém, a situação seria mais dramática, uma vez que perderíamos informações sobre a origem e a evolução da vida.
Agora, prepare-se: dadas as mudanças climáticas impulsionadas pela ação humana, talvez esse mundo pasteurizado não esteja tão longe. E ainda assim, apesar da proximidade, os efeitos e possíveis mecanismos de resposta da diversidade biológica à crise ainda são pouco entendidos.
Sabemos que, em resposta às mudanças, indivíduos que fazem parte de populações em condições naturais podem se deslocar para acompanhar climas mais favoráveis, ou então se ajustar às novas condições, seja por meio da plasticidade fenotípica, seja pela adaptação evolutiva.
A primeira diz respeito à capacidade dos organismos de alterar características da fisiologia, comportamento e/ou morfologia conforme as condições do ambiente, enquanto a segunda promove ajustes genéticos. Tempo, habilidades de dispersão e diversidade genética são condições essenciais para que esses mecanismos funcionem.
Postas as regras do jogo, cabe à biologia das mudanças climáticas responder se haverá organismos ganhadores e perdedores nessa corrida. Anfíbios e répteis, por exemplo, que são animais ectotérmicos —isto é, capazes de controlar a temperatura corpórea por meio do comportamento, movendo-se entre sol e sombra, entre outros—, dependem do calor ou do frio do ambiente para manter a temperatura interna dentro de limites adequados para a sobrevivência; são, portanto, mais vulneráveis aos impactos. Nesses organismos, mesmo pequenas variações ambientais podem restringir severamente o tempo de atividade, reduzir o ganho de energia e limitar as taxas de crescimento populacional, aumentando assim os riscos de extinção local.
Ainda que a seleção natural possa moldar os padrões de variação fenotípica e genética, um dos grandes desafios da ciência consiste em investigar evidências empíricas de seleção e adaptação, e como esses processos afetam a persistência da diversidade biológica. Desafio ainda maior para populações naturais, às quais faltam referenciais experimentais e abundam lacunas de conhecimento. Justamente por isso, o impacto das mudanças climáticas é frequentemente analisado sob perspectivas estáveis que avaliam se as espécies podem tolerar climas mais quentes e estressantes previstos para o futuro, mas não consideram a possibilidade de ajustes evolutivos.
Mais do que servir de mero cenário, os atributos ambientais podem selecionar as características das populações e espécies cujos DNAs reúnem informações sobre as condições em que determinadas variantes genéticas foram selecionadas por pressões ambientais. Essa variação, chamada genética adaptativa sob seleção ambiental, é capaz de revelar as condições nas quais genótipos mais resistentes foram selecionados, e assim trazer insights a respeito de pré-adaptações que serviriam para manter populações saudáveis em futuros cenários climáticos.
Meu laboratório no Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA) busca evidências empíricas de adaptação climática em populações naturais de organismos amazônicos que possam ajudá-los a escapar dos desafios postos pelas mudanças climáticas. Em colaboração com pesquisadores da Universidade de Brasília (UnB), de Gotemburgo (Suécia) e Kew Botanical Gardens (Reino Unido), publicamos recentemente na revista DiversityandDistributions um estudo que avança nesse entendimento.
A partir de dados genômicos de uma espécie de lagarto (calango da mata; Kentropyx calcarata), conduzimos análises de associação genoma-ambiente que integram os dados empíricos obtidos de populações naturais às previsões climáticas e de uso da terra (como desmatamento). A análise é feita sob dois cenários possíveis: moderado e extremo, para onde caminhamos, com mais emissão de carbono, temperaturas e desmatamento mais extremos.
O objetivo é inferir o potencial de resgate evolutivo ao longo da Amazônia. Ou, em outras palavras, avaliamos a possibilidade de, no futuro, ocorrer a disseminação de adaptações climáticas pré-existentes ao longo da distribuição da espécie de calango por dispersão dos organismos e, assim, prevenir processos de extinção local.
A variação genética do calango estudado está estruturada em dois grandes grupos: um distribuído em regiões tipicamente mais secas e sazonais no sudoeste da Amazônia e transição Amazônia-Cerrado, e outro em regiões úmidas e menos sazonais da Amazônia central.
No cenário moderado, as populações adaptadas a regiões mais secas e sazonais conseguirão se manter e, no futuro, acessar regiões onde as populações mais vulneráveis perderão as áreas adequadas à distribuição e, assim, resgatá-las da extinção local. No cenário extremo, porém, ocorrerá grande perda da distribuição potencial e baixíssimas chances de resgate evolutivo entre as populações mais e menos vulneráveis, indicando altos riscos de extinção local.
Se houver governança para manter um cenário moderado no futuro, populações na região da transição ambiental entre a Amazônia e o Cerrado, hoje sob forte impacto e pressão de desmatamento, poderão ser importantes fontes de variação genética adaptativa para evitar que populações mais vulneráveis se extingam. Apenas a proteção da floresta e a mitigação das mudanças climáticas poderão promover o resgate evolutivo e prevenir a perda substancial de diversidade biológica de organismos ectotérmicos na Amazônia.
Os resultados que obtivemos enfatizam a importância de compreender processos em geral negligenciados, como a adaptabilidade das espécies, para aprimorar modelos preditivos, além de sugerir o que pode ser feito para mitigar e frear impactos danosos a essa altíssima biodiversidade em cenários climáticos cada vez mais desafiadores.
É necessário avaliar espécies ecologicamente diferentes e em escalas biológicas e espaciais variadas para estimar a generalidade desses achados e permitir identificar características que conferem vulnerabilidade e resistência, assim como as espécies-chave dos efeitos climáticos. Ainda há muito a se fazer em termos científicos e conservacionistas. A corrida é contra o relógio das ações humanas.
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Fernanda P. Werneck é bióloga e pesquisadora no Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA).
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