Djamila Ribeiro: Dizzy Gillespie e a música brasileira

há 8 horas 2

Noites atrás, fui tomada por um sentimento de profunda realização. Estava com minha filha, vendo-a encantada com a riqueza do jazz, um gênero que aprendi a amar e que, para minha alegria, faz parte da vida dela.

Estamos em Nova York para as férias após um semestre letivo na Universidade de Nova York, e Thulane me disse que gostaria de assistir a um show de jazz. Quando ela esteve no Reino Unido, onde seu pai fez doutorado sanduíche, pôde ir a uma casa de jazz em Londres, onde amou a experiência.

Bom, já tínhamos outras programações para essa semana de férias e, por acaso, a noite disponível no Blue Note, lugar histórico do jazz na Bleecker Street, tanto pelos assentos quanto pela nossa agenda, seria estrelada por Dizzy Gillespie All Star. Eu achei o máximo, pois meu pai, com quem passei a gostar e ouvir o jazz na minha juventude, amava ouvi-lo.

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Mas confesso que não conhecia a fundo a história de Dizzy Gillespie, morto em 1993, até essa noite, quando descobri a relação do trompetista com a música brasileira. A banda da noite no Blue Note foi formada por John Lee, diretor musical e que, assim como o baterista Tommy Campbell, se apresentou por anos com Gillespie e segue divulgando seu legado. Além disso, o All Star traz Charlie Porter no trompete, Erena Terakubo no sax, Abelita Mateus no piano e Roger Squitero na percussão.

O baixista John Lee, que desde os anos 1980 dedica sua vida a manter viva a música de Dizzy, compartilhou histórias entre as músicas, contando como o trompetista reconhecia a riqueza das influências brasileiras e as integrava ao seu repertório.

Dizzy via a música sul-americana, em especial a brasileira, como fonte de inspiração para seu jazz, desenvolvendo um ritmo absolutamente inovador. Durante a excelente apresentação, a banda tocou músicas de Tom Jobim, João Bosco e Ivan Lins para uma série de aplausos.

Vale dizer que Dizzy, com sua capacidade de criar pontes, incorporou influências afro-cubanas, em ritmo e histórias que enriqueceram sua música. Ele também estabeleceu trocas importantes com músicos da Argentina, como Lalo Schifrin, reconhecendo a profundidade e a diversidade musical do continente americano.

Suas explorações musicais não eram meros detalhes técnicos; elas eram encontros com troca, pois, mesmo partindo de um país imperialista, Dizzy reconheceu a humanidade do latino-americano, estabelecendo conexões, desafiando barreiras e criando música, um caso que deveria ser o norte para as trocas culturais contemporâneas entre o país do norte e a América do Sul.

Em 1964, ele surpreendeu o mundo ao anunciar sua candidatura independente à presidência dos Estados Unidos. Era uma candidatura simbólica, mas carregada de provocações. Ele prometeu renomear a Casa Branca como "Blues House" e nomear grandes músicos como Duke Ellington e Miles Davis para cargos de liderança. Satírica e lançada numa época de segregação racial, em que pessoas negras geniais se apresentavam para plateias segregadas, sua campanha trouxe reflexões que continuam relevantes.

Hoje, pensando naquele momento único no Blue Note, vejo como a experiência de estar com minha filha também reflete essa transmissão de valores e histórias. Naquela noite, sentada ao lado dela, percebi que uma melodia que meu pai ouviu e trouxe à minha vida agora ressoa também no coração dela. E pude imaginá-lo conosco, apreciando o espetáculo.

Ela, fascinada pelas melodias e pelo talento dos músicos, é uma extensão de algo que eu aprendi a amar. Essa conexão, que atravessa gerações, que a música traz —como o jazz, o samba, entre outros ritmos— é memória, identidade e partilha ancestral.

Dizzy, mesmo mais de 30 anos após sua morte, permanece imortal não apenas por suas contribuições ao jazz, mas pela força de suas ideias e pelo impacto que continua a gerar. Ele nos lembra que as fronteiras entre culturas são, na verdade, pontes esperando para serem atravessadas. E que momentos como aquele no Blue Note —onde John Lee e seus companheiros mantêm viva a chama de Dizzy— são celebrações daquilo que é mais humano: a capacidade de nos conectarmos através da arte.

Na sua candidatura à presidência, ele sonhou com um mundo onde a música pudesse inspirar mudanças sociais profundas. Talvez ele soubesse que essas transformações começam justamente assim: com pequenos momentos de descoberta, passados de uma geração para outra, no coração pulsante de uma noite de jazz.

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