: Direita e esquerda engasgam com 'A Última Ceia' nas Olimpíadas

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Um grupo de homens se senta à mesa, todos do mesmo lado do móvel, em perfeito equilíbrio geométrico, seis à direita, seis à esquerda e o mais importante no centro, o homem, Jesus Cristo. Ele é o ponto de fuga da imagem, para onde todas as linhas convergem, e atrás dele os raios de sol que entram pela janela conferem à sua figura uma aura luminosa. "A Última Ceia", obra-prima de Leonardo Da Vinci, ele também o cara, vem sendo lembrada como a vítima da vez, alvo da ciranda "woke" de progressistas identitários.

Numa das muitas cenas escalafobéticas da cerimônia de abertura das Olimpíadas de Paris, no final da semana passada, uma mulher gorda com uma tiara reluzente na cabeça, ladeada por drag queens, algumas pessoas trans e depois um homem quase pelado pintado de azul e uma criança, também parece comandar uma gigantesca mesa de jantar. Eles são 17 pessoas no total, não 12, como os apóstolos em volta de Jesus Cristo no momento em que ele diz que naquela sala há um traidor.

É a milésima polêmica da vez num mundo expert em fabricar contendas inúteis. Teriam os organizadores das Olimpíadas querido insultar todos os cristãos com uma festa drag? Teriam eles parodiado a obra tão solene de Da Vinci? No tribunal digital, defensores e detratores da cena se engalfinham, fazendo quem não viu nada de chocante ali passar a duvidar do que viu e quem viu gritar ainda mais alto.

Os responsáveis pela performance no rio Sena já se pronunciaram dizendo que não. Não era um ataque aos cristãos nem à obra de Da Vinci. Era uma referência a Baco, o deus do vinho, e às festas pagãs do monte Olimpo.

Não importa. As intenções por trás de uma performance ou obra de arte não neutralizam as leituras que fazemos delas. O mundo todo viu ali uma "Última Ceia" montada por corpos desviantes, que seriam expulsos da Bíblia e jamais apareceriam na iconografia religiosa encomendada aos renascentistas pelos ricos e poderosos da época, caso da obra de Da Vinci, um afresco que adorna o refeitório de um antigo mosteiro em Milão.

O artista era ele mesmo um transviado, homossexual perseguido e preso então pelo crime de sodomia. Mas tinha contas a pagar e topou o "job" oferecido pelo duque da cidade, Ludovico Sforza. Seu afresco mais célebre, da mesma maneira que todas as suas pinturas, é de uma harmonia sublime, a mais estável e bem construída arquitetura a emoldurar os comensais dispostos diante de nós na mais cristalina das composições, não fosse o abalo causado pelas notícias bombásticas de Jesus. Da Vinci, vejam, era apolíneo na atenção à beleza das formas; a festa das Olimpíadas se queria o oposto, a esbórnia dionisíaca.

Que em pleno século 21 estejamos há dias discutindo uma obra de arte do século 15 é talvez o único lado bom da história —ou mau, já explico. Da Vinci, escreveu um crítico no site de cultura pop Vulture, teria adorado a festa para ele em Paris, cheia de gente que, como ele, talvez não fosse bem-vindo em certos círculos de poder e prestígio. Tendo a concordar que ele curtiria o fervo, longe da sisudez da ceia no mosteiro.

Outros artistas, muitos outros, aliás, já fizeram releituras mais ou menos espertas, mais ou menos ousadas, escandalosas, da "Última Ceia". O tableau vivant olímpico agora seria só mais uma, e das mais fracas, embora preencha todos os requisitos da cartilha "woke" e capriche na inclusão de todas as infinitas letras da sigla LGBTQIA+.

O fotógrafo americano, também gay, David LaChapelle talvez tenha feito a melhor delas, mantendo um Jesus de ares angelicais no centro de sua composição, mas rodeando o filho de Deus com homens negros de roupa esportiva, um elenco que poderia ter saído de qualquer clipe de hip-hop da virada do milênio. LaChapelle juntou corpos estigmatizados em torno da figura de Cristo para dizer que, no fundo, estamos falando de amor ao próximo, sem ressalvas.

Que estejamos discutindo essas imagens ainda, em especial Da Vinci, centenas de anos depois atesta que arte que é boa sobrevive a tudo, nos constrói como seres humanos e nos distancia da barbárie. Que estejamos ainda no assunto mostra que talvez haja um esgotamento de ideias e referências que mergulha nossa cultura contemporânea num sem-fim de remakes, tortos, anódinos, bizarros, que seja, mas que não chegam aos pés dos originais.

Os raivosos, de autoridades católicas a figuras ilustres da novíssima ultradireita global, não perderam a chance de desfilar sua intolerância diante do mundo. A turma colorida da festa drag olímpica, por outro lado, não criou nenhuma obra de arte, só mostrou o que qualquer ser esclarecido entre nós deveria encarar como nada mais que a realidade plural do mundo.

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