Dados e identidade: o Santo Graal da sociedade contemporânea

há 3 horas 1

Desde o início do uso da internet mais transacional, no final dos anos 1990, se busca estabelecer um padrão único e universal de identidade digital forte no mundo, tanto para aumentar a confiança entre partes que se relacionam através de telas e interfaces, como para combater a prática de crimes.

Com o advento da inteligência artificial e da propagação de deepfakes (réplicas sintéticas de imagens ou sons humanos) essa busca se intensificou ainda mais. Contudo, na corrida pelo Santo Graal da sociedade contemporânea, os fins não podem justificar os meios.

Recentemente, a viralização do projeto Worldcoin, da Tools for Humanity, que pretende, por meio do registro da íris, criar uma prova única de autenticidade humana, acendeu um debate global, levantando críticas e preocupações.

No Brasil, onde já foram coletados milhares de dados em troca de recompensa financeira, a empresa é alvo de investigação pela Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD), que pede esclarecimentos sobre o tratamento dos dados biométricos capturados, ou seja, da íris, a partir da qual é gerado um identificador único.

Se de um lado a contraprestação em criptomoedas, o equivalente a cerca de R$ 700, não é vedada, é importante destacar que, por outro, a livre escolha do titular pode ser comprometida, principalmente em um país onde 27,4% da população vive abaixo da linha da pobreza e sete milhões de pessoas encontram-se desocupadas.

Apesar da preocupação com a contaminação do consentimento, o pano de fundo dessa discussão é o direito de propriedade sobre os dados.

Nesse sentido, o entendimento global se bifurca, dependendo do país e da cultura. Alguns, como os europeus e próprio Brasil, seguem uma corrente mais conservadora, em que o Estado intervém na proteção, coibindo excessos que possam colocar a vida ou a saúde de indivíduos em risco.

Do outro lado, há uma corrente mais neoliberal, observada em países como Estados Unidos, em que se estimula a autonomia da vontade e a liberdade de contrato entre as partes. Lógica que faz sentido, uma vez que titulares, sob o signo da Web2, já cedem seus dados, muitas vezes como moeda de troca para uso de serviços "ditos" gratuitos.

É claro que, ainda que a captura e a oferta econômica não sejam proibidas, as empresas engajadas nesta metodologia de coleta de dados biométricos, como a Tools for Humanity, precisam seguir as legislações de proteção e segurança em vigor ao redor do mundo. Afinal, todo cuidado e responsabilidade são necessários em se tratando de dados sensíveis. Por isso, é indispensável que o ganho econômico não distorça o consentimento e que indivíduos tenham pleno conhecimento sobre a finalidade da coleta de seus dados.

Dito isto, ficam duas provocações. A primeira, referente à propriedade dos dados, inequivocamente do titular, e os limites do Estado com relação à escolha individual, desde que, importante frisar, não seja maculada.

A segunda, é que o caso da Tools for Humanity não seja o primeiro e nem o único. Todas as entidades que fazem capturas biométricas, entre dispositivos, aplicativos e serviços, devem estar igualmente sujeitas às regras de proteção de dados e cibersegurança, demonstrando cumprimento legislativo, prestando contas às autoridades pertinentes e apresentando relatórios de impacto, salvaguardas e garantias.

Com isso, se esclarece que estamos, sim, na corrida do século por um padrão de verificação de identidade digital humana forte e universal, mas não em um vale-tudo.

O editor, Michael França, pede para que cada participante do espaço "Políticas e Justiça" da Folha sugira uma música aos leitores. Nesse texto, a escolhida por Patricia Peck foi "Human" de Rag’n’Bone Man.

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