Como assistir a "Emilia Pérez" com os olhos frescos? Seria possível avaliar roteiro, interpretações e mise-en-scène, imune à polêmica que entrelaça a desastrosa recepção mexicana, as terríveis declarações da atriz principal e o fato de que se trata de um grande concorrente do candidato brasileiro ao Oscar?
Esse contexto ideal para analisar o novo longa do francês Jacques Audiard parece hoje improvável. Quando esta crítica teve a oportunidade de vê-lo pela primeira vez, o cenário era outro, felizmente. Mas os problemas já saltavam aos olhos —e isso mesmo para quem não condena a opção estética pelo musical para tratar de assuntos como feminicídio, tráfico de drogas, violência policial, pessoas desaparecidas.
O filme começa centrado em Rita —Zoe Saldaña—, jovem advogada de origem humilde que estuda um caso de assassinato. Seu cliente é o marido da vítima e, como suspeito, pede que Rita defenda a hipótese de suicídio.
É então que surge o primeiro número musical. Conduzida pela advogada, a cena tem como objetivo apresentar uma personagem desiludida com o trabalho. Ao digitar no computador e andar pela cidade, à noite, ela canta, num jogo em que o coro formado pelos passantes se imobiliza para ouvi-la e ganha movimento para respondê-la.
"Quando falamos de violência, abramos o coração. Amemos as mulheres, perdoemos os homens, abracemos a miséria", canta Rita, enquanto o coro responde versos como "a derrota da má-fé" e "o triunfo do amor". Há ironia em sua fala, e revolta contra a hipocrisia. Ainda assim, nada, nessa sequência inicial, convence —nem a performance, nem a encenação, nem a letra, como atesta o trecho aqui reproduzido (perdão, leitores).
São fragilidades ínfimas perto dos terríveis problemas do longa. Frustrada, a advogada recebe o telefonema de Manitas —Karla Sofía Gascón—, magnata das drogas que lhe propõe um dinheiro infinito para que ela o ajude. A missão pouco tem a ver com a área jurídica: ele quer mudar de sexo e precisa encontrar um cirurgião plástico que aceite o serviço.
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Produzido pela Netflix, o filme se estrutura segundo a lógica de seriado que faz o sucesso do streaming, numa sequência de peripécias e resoluções que sempre abrem novas narrativas. De um primeiro assunto (feminicídio), passa-se a um segundo (mudança de sexo), terceiro (o drama dos desaparecidos) e mesmo quarto (amor entre mulheres) —temas enormes e delicados, que mereceriam mais respeito e pesquisa.
Como não há tempo para aprofundar o que quer que seja, Audiard abusa de estereótipos e superficialidades. Não deixa claro, por exemplo, se Manitas quer se tornar Emilia Pérez para não deixar pistas —os rivais querem sua pele— ou se se reconhece como mulher.
Quando todo o elenco deixa o México, parece o início de uma nova temporada. Reencontramos Manitas como mulher, em Londres, onde também vive Rita; acreditando-se viúva, a esposa do traficante muda-se com os filhos para a Suíça.
No regresso ao México, Rita e Emilia comem juntas e recebem o folheto de uma mãe que procura pelo filho. A maneira tão corriqueira como a questão dos desaparecidos surge na trama é sintomática do descompromisso de Audiard, que cria assim um frouxo ponto de virada para a personagem-título.
Apoiada nos contatos e nas ferramentas do tráfico, Emilia Pérez passa a ajudar familiares a descobrir o paradeiro de pessoas desaparecidas.
Qual é a relação de Emília Pérez com o tráfico? Seu cartel sabe que ela e Manitas são a mesma pessoa? Sobram furos no roteiro. O espectador mais disposto à boa-fé pode até se deixar levar pela interpretação de Gascón. A atriz madrilenha realmente se destaca e enche a tela. Mas não basta.
Qualquer espectador latino-americano se incomoda com a direção excessivamente eurocêntrica. A trama carece absolutamente de lastro na realidade, já que o realizador francês não se interessou nem pelo tecido urbano, nem pela paisagem natural, menos ainda pela sonoridade do espanhol do México ou pelas questões de pessoas transgênero.
O maior mistério da temporada é mesmo entender como o filme conseguiu treze indicações ao Oscar.