É quase impossível não ver "Rua Aurora" sem pensar em Eduardo Coutinho. Não que Camilo Cavalcante se dedique a imitá-lo, não é isso. É que Coutinho em muitos de seus filmes nos apresentou ao lado incomum de pessoas "comuns", com quem podemos cruzar a qualquer momento sem saber o que realmente trazem consigo e podem repartir com outros.
Cavalcante, ao contrário, nos apresenta o lado comum de pessoas, digamos, "incomuns", no caso os habitantes da rua Aurora, centro historicamente deteriorado de São Paulo. Tudo começa no Hotel Elite. Como já indica o nome, um hotel quase em ruínas.
Ali está sua proprietária, que herdou o estabelecimento e momento em que ali ainda havia ao menos a sombra de uma elite. Hoje, em meio a um mobiliário que cai aos pedaços, ela bem que tenta vendê-lo. Mas ninguém se habilita. Por ali vive um senhor, infeliz, filho ilegítimo de um delegado. Boa pessoa, diz ele, mas não o amava. Parece que esse era seu triste destino entre os homens. Diz que tem recebido mais dos animais do que deles.
Eduarda, que se chamava Fábio antes de se assumir como mulher trans, é proprietária de um cinema pornô. Coisa antiquada, diz ela. Conta que, quando começou a transição, teve de deixar o emprego. A Igreja Universal, a que pertenceu, não ajudou muito. Encontrou acolhimento em uma igreja alternativa, com leitura que lhe pareceu mais piedosa da Bíblia.
Os tipos se sucedem: o gay que foi presidiário, tem trauma de policiais e vê o presídio como inferno. Outro é gay, nordestino e preto: fala do medo que sentiu quando soube dos "skinheads", inimigos dessas três categorias. Mas hoje tem um emprego diurno e outro noturno, quando vira drag queen e canta em um inferninho. Manda seu dinheiro para a família.
Esse ambiente de pessoas familiares, malgrado o estigma de viverem na rua Aurora, de repente pode ser quebrado: uma briga na rua, uma perseguição em outra, onde um homem parece ter sido assaltado. Como se ignorasse tudo isso, em sua pequena loja trabalha o velho alfaiate. E trabalhará até morrer, diz.
Camilo Cavalcante, diretor deste documentário, vai encontrando uma enorme variedade de personagens ali onde se supunha haver apenas marginais. Nada disso. Lá está a avó, que já foi bandida, chegou a ser presa por latrocínio, porque estava na companhia de bandidos da pesada. Acabou liberada e hoje não quer mais nada com o crime. Vive como funcionária do Elite. Se dá bem com as pessoas do local. Só teme mesmo os "nigerianos".
Os nigerianos que Cavalcante encontrou são, na verdade, senegaleses. Como Laye, cabeleireiro masculino e muçulmano de quatro costados. Os senegaleses são festeiros, também distribuem comida aos pobres na praça Princesa Isabel.
Muitos se viram para viver, como o Big Marajá, que parece ter começado na pirataria de fitas VHS, mas a partir daí montou um pequeno império, tornou-se inclusive compositor e cantor. Como dizem, um marajá. Bem diferente do rapaz também nordestino, que estudou no Paraguai, acabou trabalhando no Mato Grosso do Sul por um mês, foi despedido junto com outros e não recebeu nem salário, nem ajuda para voltar ao Nordeste.
Agora ganha a vida na reciclagem, como diz, e sofre com o desprezo com que as pessoas olham seu trabalho. Diz que a maior parte das pessoas sem-teto são boas pessoas. Espera conseguir o dinheiro para a passagem (a prefeitura cortou a verba que antes destinava à repatriação das pessoas, por conta da pandemia —ao menos boa parte do filme foi filmada nessa época). Aí voltará para ser caminhoneiro, como os irmãos.
Esse triste passeio pelo não-dito paulistano a horas tantas sofre um solavanco, quando um sax quebra o silêncio. Um músico de rua produz beleza no lugar pouco inspirador (na verdade, está na Vieira de Carvalho, junto ao Largo do Arouche, quer dizer, é uma licença poética do filme).
Parece a senha para dizer que nem tudo é desgraça na Aurora. Lá está também um simpático jamaicano, dono do Jerky’s, restaurante de cozinha caribenha.
É quando entramos em um cinema em ruínas. Não se mostra a fachada, mas parece que lá estão os restos do antigo cine Aurea. Ali aparece Virgílio Roveda, ex-assistente de câmera e ex-faz-tudo nos tempos do cinema da Boca do Lixo. Ele e a atriz Debora Munhyz parecem entrar na história como fantasmagorias que habitam as ruínas do velho cinema.
O cinema parece deslocado nessa história, mas talvez nem tanto: dessas sombras emerge o imaginário, fantasmas do passado (da bandidagem clássica, dos Hiroito ou Quinzinho) investidos nos personagens do presente.
"Rua Aurora: Refúgio de Todos os Mundos" é um belo documentário, em que ficção e realidade, mito e presente se fundem para produzir a imagem de um lugar triste, velho e sujo, em que esses fantasmas sobrevivem encarnados em personagens no entanto tremendamente "comuns", destinados a viver à margem da cidade no centro da cidade.