Em comemoração ao centenário do escritor pernambucano Osman Lins, ocorrido no ano passado, três de seus livros mereceram cuidadosas reedições: "Os Gestos", "Guerra sem Testemunhas" e "Avalovara".
Diferentes quanto à forma —conto, ensaio, romance— , eles têm em comum uma densa reflexão sobre o ofício de escrever, notadamente nos anos mais duros da ditadura militar de 1964, período de produção da maior parte de sua obra.
O leitor pode, assim, ter uma visão ampla e diversificada da natureza experimental e da singularidade que apresenta, como a crítica, com razão, não cessa de ressaltar.
Osman Lins pertence à família literária de Jorge Luis Borges, Julio Cortázar e Italo Calvino, com os quais compartilha a aliança entre a liberdade da imaginação e o rigor construtivo.
Para tanto, o escritor deve exercer integralmente sua função de "contemplar, desafiar, opinar, inventar, indagar, negar, inquietar", pois o livro é o meio pelo qual efetivamente age. Inverte, assim, a frase clássica de Mallarmé, "o mundo existe para acabar em um livro". Ela se transforma em "um livro existe para acabar no mundo".
Mais do que uma política, uma ética da escrita. Ou nas palavras de André Gide, "uma literatura submetida é uma literatura envilecida, por maior e legítima que seja a causa a que serve".
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Em "Guerra sem Testemunhas", de 1969, que desde o título reitera a luta do autor com a palavra, destaca não só a escrita, mas a produção e circulação do livro na sociedade, o papel que nela desempenham o escritor, o leitor, o editor, o crítico. Segue o exemplo de Michel Butor, mais um integrante do seu panteão francês, para quem "todo escritor honesto [...] se defronta hoje com o problema do livro". Das múltiplas perspectivas por que aborda a questão, oferece vias de acesso para melhor compreensão da sua própria obra ficcional e teatral.
Nos contos de "Os Gestos", publicado inicialmente em 1957, Lins já traça o caminho a seguir, ao propor "uma visão a seu tanto sombria da nossa condição", apesar, diz ele, da sua "experiência ainda curta". São textos na sua maioria autoficcionais, em que a vivência dos personagens se mistura à memória biográfica do autor.
O resultado são perfis traçados com maestria, colhidos em momentos transitórios —gestos— da vida retratada, para os quais existir "era uma coisa dolorosa, difícil e extremamente confusa".
"Avalovara", de 1973, é a obra-prima do autor. O título remete ao deus tibetano Avalokiteçvara —aquele que enxerga os clamores do mundo— e se apresenta, no livro, como um pássaro feito de pássaros.
Estranho e inquietante, o romance prende logo a atenção do leitor, segundo Antonio Candido, pela "poderosa coexistência da deliberação e da fantasia, do calculado e do imprevisto, tanto no plano quanto na execução de cada parte".
Baseado em um palíndromo latino que, disposto em cruz num quadrado, pode ser lido em todas as direções, carrega um significado enigmático. Pode ser traduzido como "O lavrador mantém cuidadosamente a charrua nos sulcos" ou "o lavrador sustém cuidadosamente o mundo em sua órbita", o que lhe confere um sentido ao mesmo tempo literal e alegórico, físico e metafísico.
Sobre o quadrado a espiral, que passa várias vezes na mesma letra, segundo sua disposição gráfica, retoma os relatos dos encontros do escritor Abel com três mulheres: Anneliese Roos, feita de cidades; Cecília, feita de pessoas; a terceira, sem nome, apenas figurada por um símbolo gráfico.
Está posto o "jogo de armar" que é o livro. Ou seja, "transfigurar a experiência em um universo de discurso", nas palavras de George Gusdorf em epígrafe.
Algumas vezes os relatos são interrompidos, como que cortados, por uma frase curta a respeito da situação política do país sob a ditadura, o que dá imprevista inflexão ao texto: "nenhum indivíduo, instituída a opressão, subtrai-se ao seu contágio". Segue o jogo narrativo para "representar o que há de aleatório em nossas existências" e "ampliar a área do visível".
Como poucos escritores entre nós, Osman Lins entregou-se a essa tarefa de modo rigoroso e desassombrado, como a revisitar e repetir em diferença uma experiência inaugural.
A mãe do escritor morreu quando ele tinha apenas 16 dias de nascido. Não tinha nenhuma imagem dela, nenhuma fotografia. Disse certa vez que escrevia para encontrar esse rosto perdido. Vale a pena acompanhá-lo nessa busca.