"Misericórdia" começa com a imagem de uma estrada sendo engolida pelo avanço de um carro, em ponto de vista dentro do veículo. Este chega a uma pequena cidade rural, com suas construções pétreas, ruas desertas, portas e janelas fechadas.
O ir e vir de lugar a outro será um motivo recorrente aqui. E numa toada de thriller de suspense e assassinato. O movimento, essa grandeza do cinema, habita os filmes de Alain Guiraudie desde sua estreia na direção, em 1990, no curta "Les Héros Sont Immortels", onde dois personagens conversam e aguardam a chegada de um terceiro.
Há em sua obra uma mobilidade literal, bem típica do cinema, sobretudo o das comédias românticas, filmes de aventura e perseguição. Numa voltagem muito a ver, em alguns casos, com a do cinema indie americano —à francesa, claro.
Para introduzir "Misericórdia", importante citar "Um Estranho no Lago", o melhor filme desse grande diretor e que também traz o elemento do crime.
No longa de 2013, há uma tensa energia que paira sobre os homens que procuram encontros sexuais e que mistura prazer, gozo e perigo. Uma cena recorrente, a da área onde os frequentadores estacionam seus carros, é uma imagem-síntese sobre todo um estado de emoções e ações que pairam naquele lugar. Uma espécie de epígrafe que transmite toda uma energia —e suspense— ao espectador.
"Misericórdia" tem, igualmente, a sua imagem epigráfica —um bosque, as árvores tremulando ao som imperativo do vento, os cogumelos adubados naturalmente pelo corpo de um cadáver enterrado e que brotam suculentos fora de época.
Na trama, Jérémie volta à sua cidade natal para o funeral de seu ex-chefe, o padeiro Jean-Pierre. Ele fica hospedado na casa da viúva, Martine, mas o filho dela, Vincent, cisma que Jérémie quer transar com a mãe.
O passado jamais deixará de ser vago, mas o que nos chega é o suficiente para intuir. Quando púberes, Jérémie e Vincent brincavam sexualmente? Vincent é violento com Jérémie porque sua presença o excita?
É essa energia erótica e letal que paira em "Misericórdia". Uma energia que parece nos induzir a ver um passado que jamais saberemos, e nos resta a detenção da imanência do presente. Os fatos são incertos, mas as emoções são declaradas.
Martine sabe que Jérémie amava Jean-Pierre. Ele inclusive pede a ela a foto do falecido em que este aparece de sunga na água —quem sabe poderia ser no mesmo lago do filme de 2013?
Elementos como esses remetem à anticomédia romântica "O Rei da Fuga", de 2009, que lembra "O Demônio das Onze Horas", de Jean-Luc Godard. Neste, Jean-Paul Belmondo e Anna Karina se apaixonam, matam e caem em fuga pelo mundo.
No filme de Guiraudie, um homossexual na crise dos 40 experimenta o amor e sexo com uma jovem que se apaixona por ele. Ambos saem em disparada por quilômetros, transando e vivendo a vida. Até ele decidir retornar aos seus instintos originais.
Esse aspecto volante habita não apenas a física, mas também o comportamento dos personagens, os desejos, ações e, bem importante, a própria narrativa. Em síntese, a subversão é a grande presença na obra de 14 filmes de Alain Guiraudie.
"Misericórdia", por sua vez, é um conto moral. Philippe, o pároco da aldeia, é uma espécie de sábio e narrador onisciente, quase antevendo o assassinato que ocorrerá mais para frente na trama.
Essa incrível realocação de elementos e procedimentos cinematográficos que marcam a obra de Guiraudie, tirando o chão do espectador, aparece forte aqui. Em certo momento, Philippe inverte os papéis e pede para Jérémie ouvir sua confissão.
O que sai disso é uma dissertação sobre viver e morrer. O padre relativiza o ato de matar e diz que a morte não é um problema, pois a vida precisa acabar. E, também, que um crime não deve impedir a vida de continuar.
A misericórdia do título pode ser entendida como uma revisão de certas certezas. A remontagem que Guiraudie faz em seus filmes acaba falando sobre consumação, sobre viver e morrer. O sexo, em suma, mas curtido por amor e aventura.