Crítica: Livro vencedor do Goncourt narra estátua ocultada pelo Vaticano

há 4 meses 25

À primeira vista, "Velar por Ela", título do romance de Jean-Baptiste Andrea, parece remeter à relação entre o protagonista Mimo Vitaliani e Viola Orsini, a jovem por quem nutre sentimentos de veneração, raiva e amor.

Mas a regência do verbo "velar" se destina, sobretudo, a uma célebre pietà esculpida por ele nos anos 1940 —representação católica da Virgem Maria com o corpo morto de Jesus nos braços.

Se, como afirma Mimo, "uma escultura é uma anunciação", será essa figuração do sagrado o motor da história, centro de um mistério que perdura nas mais de 400 páginas do livro.

Mais deslumbrante do que aquela de Michelangelo, a estátua guarda um segredo a ser revelado por Mimo, que reconta sua vida em uma abadia do Piemonte, local em que se isolou há 40 anos. Autor de poucas obras, ele tem 82 anos e está à beira da morte. O ano é 1986.

Ocultada por decisão do Vaticano, a escultura nunca é totalmente descrita e dorme nas sombras, "mergulhada em um sonho de pedra". "A única luz vem do corredor, revela dois rostos, o contorno de um pulso."

Autor de outros três romances, o escritor e roteirista francês Jean-Baptiste Andrea já publicou "O Pianista da Estação" no Brasil, protagonizado por um músico que toca Beethoven em pianos públicos.

Em "Velar por Ela" também acompanhamos a formação de um artista: enviado aos 12 anos pela mãe para viver como aprendiz de um artesão na localidade de Pietra d´Alba, Mimo revela desde criança enorme capacidade de esculpir. Explorado e maltratado, o jovem chamará atenção para seu talento no esplendor da Villa Orsini, território da família de Viola.

Dentro das fórmulas do gênero, o romance transporta os leitores para uma ambientação saborosa, da villa italiana com suas laranjeiras e limoeiros às paisagens arquitetônicas de Florença e Roma, em uma narrativa que dá centralidade à contemplação da beleza.

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O ritmo das cenas, os ganchos bem amarrados e os bons diálogos garantem a agilidade da trama, construída pelas mãos de um profissional experiente que alterna o ponto de vista de Mimo aos acontecimentos relatados de modo cronológico, a partir de um narrador onisciente.

Essas passagens fazem vibrar os trechos em torno de Viola, que devora livros, deseja ir para a universidade e tem o sonho de voar. Para tanto, fabrica engenhocas e estuda modos de fugir do destino de um casamento arranjado.

Já Mimo se depara com toda sorte de privações, entre elas a pobreza, a constante exploração e a baixa estatura que lhe rende toda sorte de preconceito.

A barreira entre as classes é outro elemento a separar a dupla, que atravessa décadas enfrentando uma Europa conflagrada pelas guerras, o fascismo e o ódio dos Orsini.

Premiado com o Goncourt, um dos mais prestigiosos prêmios literários franceses, o romance abraça características do folhetim. É "literatura popular de alta qualidade", proclamou Philippe Claudel, um dos dez membros vitalícios da Academia Goncourt, que assegura expressivo número de vendas após a láurea.

O capital simbólico dos prêmios convida a pensar na recepção das obras estrangeiras. A quem agrada, no Brasil, o tipo de obra chancelada pelo Goncourt?

Manipulando clichês sobre o artista genial em contraposição ao mundo que o maltrata, "Velar por Ela" é um livro que lemos como quem assiste a um filme —não exatamente um bom sinal, mas evidência do tipo de literatura hoje reconhecida por certos prêmios.

Virada a última página, não deixa grandes lembranças.

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