Crítica: Livro elucida o que leva textos a terem status de sagrados em religiões

há 4 meses 11

O processo demasiado humano por meio do qual alguns textos passaram a ser vistos como sagrados por diferentes civilizações é o tema de "A Arte Perdida das Escrituras", provavelmente o mais enciclopédico dos livros da escritora britânica Karen Armstrong.

Considerando o histórico de obras abrangentes produzidas por ela no passado, trata-se de um feito e tanto, apesar de algumas estranhezas na estrutura de sua narrativa.

Entre as grandes virtudes do livro está seu foco comparativo, que transcende o modelo ocidental de "Sagradas Escrituras", calcado quase totalmente na Bíblia.

Começando com as mitologias pré-bíblicas do Oriente Próximo e mergulhando também nas tradições escriturais da Índia e da China, a autora elucida os impulsos semelhantes que levaram sociedades tão diversas a desenvolver seus próprios cânones de textos, sem deixar de lado as particularidades de cada tradição.

Do lado dos elementos comuns, a arqueologia literária de Armstrong mostra que a ideia de textos sacros isolados e assépticos, lidos individualmente por cada fiel, não poderia estar mais distante da gênese das principais escrituras.

A força original delas era derivada quase sempre da recitação em contextos rituais –uma função muito mais próxima de uma espécie de teatro sagrado do que de uma Bíblia na cabeceira da cama.

Entre os alicerces compartilhados estão também a natureza relativamente aberta do cânone, com uma capacidade para absorver novos textos e visões divergentes durante um longo período, e a elasticidade interpretativa, considerando que raramente uma leitura literalista predominava.

Com sua visão essencialmente otimista sobre o impacto das grandes tradições religiosas, a autora cita ainda o "princípio da caridade" formulado por Santo Agostinho —"a escritura não ensina nada que não seja caridade", dizia ele —como um impulso comum a quase todos os cânones.

Seja nos ensinamentos de Jesus nos Evangelhos, no confucionismo chinês ou nos sutras (coleções de aforismos) budistas, a preocupação com o bem do próximo sempre teria sido primordial.

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Paradoxalmente, argumenta ela, a ascensão das interpretações "ao pé da letra" para os textos religiosos muitas vezes não é um sintoma de obscurantismo, mas do próprio avanço do racionalismo, como aconteceu com a Reforma Protestante.

Não é por acaso que ela colocou lado a lado os capítulos "Sola Scriptura" (em latim, "Apenas a Escritura", um dos lemas do protestantismo, com a primazia dada ao texto da Bíblia) e "Sola Ratio" ("Apenas a Razão"), contando como a Revolução Científica impactou a leitura dos textos sagrados.

Armstrong, infelizmente, decidiu acrescentar um contrapeso questionável à sua erudição e capacidade de síntese de sempre: a tentativa de explicar a trajetória das grandes religiões usando um resumo popularesco da neurociência moderna.

Ocorre que a autora aplica a distinção simplista entre as funções dos hemisférios cerebrais —o direito, supostamente mais "artístico" e intuitivo, de um lado, e o esquerdo, mais "racional" e matemático, do outro —às diferentes interpretações dos textos sagrados.

Enquanto as sociedades tradicionais que produziram esses documentos seriam dominadas pelas funções do hemisfério cerebral direito —sendo, portanto, mais flexíveis e criativas na hora de interpretar ensinamentos sacros, a tentação do fundamentalismo e do literalismo surgiria em sociedades modernizantes, em que se sobressai o hemisfério esquerdo.

É claro que o funcionamento do cérebro, mesmo no nível dos indivíduos, é muito mais complicado do que esse modelo dualista, para não falar de como a neurociência humana se manifesta no nível das sociedades. Por sorte, as menções a hemisférios cerebrais vão rareando conforme o livro progride.

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