Crítica: 'Limpa' lava roupa suja das relações de classe e gênero no Chile

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Uma mulher lava, passa, cozinha, varre, limpa privadas, recolhe o lixo, cuida de uma criança. Menciona "lençóis" 18 vezes. É da narradora de "Limpa", segunda obra de ficção da aclamada escritora chilena Alia Trabucco Zerán, de "As Homicidas".

Sua protagonista é Estela García, que trabalha para uma família abastada, forjada nos moldes neoliberais do pinochetismo. Em um formato familiar para o leitor brasileiro, a empregada mora em um quartículo na casa dos patrões.

O romance traz à mente a obra de Mierle Laderman Ukeles. Em 1973, enquanto no Chile se gestava o golpe de Estado, a artista reclamava visibilidade para as tarefas domésticas quase sempre realizadas por mulheres.

Em uma performance que buscava eliminar a separação entre seu trabalho como artista e aquele que chamou de "trabalho de manutenção", lavou a escadaria do museu Wadsworth Atheneum em pleno horário de visitas. Meio século depois, Trabucco ocupa o espaço aberto por figuras como Ukeles para que a roupa suja das relações de gênero seja lavada em público e, se possível, na arte.

"Limpa" é, segundo sua autora, "um falso policial". Em seu monólogo, a narradora busca elucidar as circunstâncias da morte, aos sete anos, da filha dos patrões. Suspeita de assassinato, Estela adverte na página dois que "a menina vai morrer" e passa a contar, de contrabando, sua própria história. Esta inclui a infância pobre, mas cercada de natureza, e a mudança para a capital chilena.

A geografia ampla e líquida de sua ilha natal, Chilóe, se contrapõe à hostilidade de uma Santiago onde se vislumbra a convulsão social atravessada pelo país andino nas últimas décadas.

Enquanto o Sul descansa imóvel em sua memória, o tempo de Estela na mansão santiaguina é cronometrado por tarefas domésticas, até completar, como em uma maldição bíblica, sete anos. Afinal, "isto era a vida: frango, cartilagem, que as batatas não grudassem na travessa, que a loucura não aderisse ao crânio, que os olhos não saltassem das órbitas".

A descrição hábil e perturbadora dessa rotina claustrofóbica compõe uma cantilena hipnótica. Quando os dias só se distinguem por referenciais do trabalho —os uniformes de segunda a sábado, a folga aos domingos—, "cada ato é uma tentativa de domesticar o tempo". Contribuem para o magnetismo da narrativa um fluxo de consciência denso, cortes cinematográficos e a tensão da tragédia anunciada.

Com o mesmo frescor vertiginoso, a autora caracteriza a dissolução do senso de identidade de sua protagonista. A reiteração do trabalho e o confinamento alienam Estela e desestabilizam sua realidade, que deve ser enfrentada sem o recurso dos soníferos da patroa.

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Como na escrita da alemã Herta Müller —uma das influências de Trabucco Zerán—, essa despersonalização se traduz, por vezes, em ações que independem das personagens. Sem intervenção aparente de Estela, o ferro esmaga as cuecas do patrão e as faxinas são feitas às segundas-feiras. Dotadas de vida própria, as mãos de sua mãe continuam trabalhando durante o sono.

A existência dessa mãe sábia, que também trançou os cabelos de filhas alheias, funciona como esteio mental de uma vida pregressa e posiciona Estela em uma corrente de mulheres que existem para que outras subsistam.

Com enorme destreza literária, Trabucco destrincha relações de classe, gênero e raça, em um lembrete de que o trabalho de manutenção está crivado de violências subjetivas. Assim, constrói uma poderosa protagonista que é, ao mesmo tempo, vítima e suspeita.

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