Crítica: Igiaba Scego escreve para contar como a guerra na Somália abateu a todos

há 1 mês 3

Escrever contra a língua da guerra, desafiar a sua sintaxe e fazer audível, de dentro, o terrível som que ela tem são alguns propósitos da escritora somali-italiana Igiaba Scego em seu terceiro livro traduzido no Brasil, publicado pela editora Nós.

Na obra, dedicada "às tias", a autora se investe do afeto maternal que nutre pela jovem sobrinha Soraya e a elege como destinatária do relato memorialístico, escrito como uma carta.

Soraya, depois de percorrer "trilhas e florestas", vive em Québec, no Canadá, e tem o inglês como primeira língua. Scego, nascida em Roma, escreve em italiano e a ele funde uma densa tessitura de vocábulos somalis num exercício de recompor na linguagem a trajetória de dispersão de seus parentes.

Investiga-se, assim, o que é "família" em face aos processos de desenraizamento e desagregação da diáspora somaliana.

Em diálogo fabulado com a sobrinha, que não fala italiano, a autora recupera eventos dos confrontos coloniais e da independência do país, mas confere especial ênfase ao período da ditadura militar de Siad Barre e à guerra civil, que sucedeu esse governo violento e ainda alarma a Somália.

"O primeiro som da guerra que minha mãe, sua ayeyo, conservou foi o rechinar da sua própria barriga (...). Depois, o grito das mulheres, que naqueles dias eram violentadas até mesmo dentro das mesquitas."

O desespero de testemunhar a guerra dos seus a partir do continente europeu, o temor de não saber se sua mãe desaparecida sobreviveria e a angústia de apreender "a cadeia industrial de conflitos" a conectar as várias guerras nas partes esquecidas do mundo ganham forma literária e se fazem sentir na dicção da remetente.

A extensa narrativa trança, como fluxo discursivo, o tempo presente da escrita ao tempo da rememoração do passado. Põe em prisma as experiências de quem partiu, de quem ficou e de quem nunca esteve no território de origem. Exige de nós, leitores e leitoras, um pacto de permanência para o testemunho, entre outras coisas, da destruição de Mogadício, capital da Somália.

O livro convoca, ainda, a compreender como "abo", "roiô", "ayeyo", "awowe", "edo" (pai, mãe, avó, avô, tia) e até a mesmo a autora foram abatidos pelo "djíro": "Naquelas primeiras semanas de guerra, perdi meu corpo, Soraya. Passava boa parte do meu tempo com os dois dedos enfiados na garganta. (...) Eu vomitava lançadores de granadas, revólveres, metralhadoras. E fuzis de precisão, espingardas, carabinas, fuzil antitanque, fuzil de assalto, fuzis kalashnikov, granadas de mão, bombas térmicas."

"Djíro", um termo central na obra, cuja tradução parece ser impraticável, vai sendo significado ao longo da narração como um estado de estilhaçamento subjetivo de quem viveu a guerra, "a maldita guerra que mora dentro de nós".

Tudo a Ler

Receba no seu email uma seleção com lançamentos, clássicos e curiosidades literárias

Para se curar do "djíro", Scego se coloca na condição de ouvinte de sua mãe e percorre veredas de autoconhecimento nas quais o saber sobre si está implicado no saber sobre ela e sobre o território africano —inscrito e atualizado em cada sujeito africano ou afrodescendente, onde quer que ele esteja.

Scego reelabora o trauma, se faz escriba e inventora das histórias afetuosamente destinadas à sobrinha. Uma forte, ainda que dispersa, linhagem feminina é assim redesenhada. As questões que atravessam as vivências de mulheres negras somalianas, como a infibulação (mutilação genital), são criticamente discutidas no registro íntimo da confidência epistolar.

De línguas e localidades diversas, essas mulheres se miram e se reconhecem. Elas afinam, evocando Cassandra —que anteviu o desfecho trágico da cidade de Troia—, uma outra gramática em que talvez, um dia, seja possível profetizar a grafia antídoto da guerra.

Leia o artigo completo