"Deuses da Peste" é, até este momento, a grande obra política sobre o Brasil atual, este que tem sido violentado pela necropolítica e seus horrendos afins. E inédita, pela grande lição —cinematográfica— sobre o teatro ser a grande sede e ponto de partida da experiência artística como meio de intervenção no mundo.
O filme será exibido como parte da 13ª Mostra Tiradentes SP, que traz, até 19 de março, uma seleção de obras exibidas no Festival de Tiradentes, em janeiro.
O teatro aparece neste filme de Gabriela Luíza e Tiago Mata Machado como centro e ponto de partida para a melhor forma possível de reflexão e mobilização, mas jamais sozinho. Uma grande manta destas referências diretas e alusivas trará de "Um Corpo que Cai", de Alfred Hitchcock, "Mar de Rosas", de Ana Carolina, a textos de Aimé Césaire, Marquês de Sade, Walter Benjamin, George Bataille, Jean Genet, João Silvério Trevisan e Bertolt Brecht.
Pinturas, gravuras e os efeitos digitais típicos deste século 21 mas remetendo ao sci-fi dos anos 1980 dividirão espaço com músicas de John Cage, Wagner, Francisco Alves e, sem melar a surpresa ao final do longa, o "Vamos ao Teatro" que Leci Brandão cantava contra a ditadura no final dos anos 1970.
O cinema de Tiago Mata Machado já tinha falado sobre o fim das vanguardas artísticas em "Os Residentes", de 2010, e sobre a impossibilidade de ação via projetos revolucionários em "Os Sonâmbulos", de 2018. O primeiro possuía uma certa vivacidade. O outro, um abatimento. Em comum, viam essas mortes históricas como um estímulo para agir e resistir, atuando em consonância com o processo histórico, entre o pensamento e o viver a vida junto à materialidade do mundo.
"Deuses da Peste" encara algo mais imediato, direto e urgente: o bolsonarismo. Exibido e premiado na 28ª edição do Festival de Tiradentes, no início do ano, algumas resenhas à época reclamaram das citações literais ao bolsonarismo e seus slogans e gestual. Um equívoco, pois esse conteúdo específico serve a uma dialética e a um certo espírito de colagem típico dos anos 1960. Afinal, a ideia antes de tudo é localizar a besta para então desmantelá-la.
Não serão raros encontros entre as artes visuais e a pop art ou "inserts" de luminosos aludindo a "O Bandido da Luz Vermelha". Clássico do imaginário coletivo, "Cantando na Chuva" ganha uma reencenação pelo coreógrafo Eduardo Fukushima. A cartela em cor vermelho-sangue faz da catártica cena uma experiência fantasmagórica, profanando o sonho e fantasia do original. Um vermelho, aliás, que remete ao plano final da obra-prima de Marco Ferreri, "Dillinger Está Morto", de 1969.
Faz sentido, também, o filme aludir ao teatro da peste proposto por Antonin Artaud —o grande artista que entendeu a consumação física, psicológica e espiritual como um meio de realização. E uma derivação possível, aplicada à política recente, que descobre a apropriação para um outro tipo de teatro da peste, o da incitação ao ódio e carnificina.
"Deuses da Peste" é uma espécie de obra em progresso. Onde o rei é William Shakespeare —mais especificamente "A Tempestade". E o grande artista em cena, Paulo Goya, que passou pelo Oficina e tem o dramaturgo inglês como culto e razão criativa.
O filme começa essencialmente como uma obra experimental de Hans Richter dos anos 1920 misturado a Kenneth Anger dos 1960 e algo da tradição generalizada que pode ser vista nas videoartes das últimas décadas. A introdução ilustra o sonho do ator dentro do filme feito por Paulo Goya. Lindas e fortes, as imagens oníricas trazem o caos mas também uma energia de mudança.
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Em seguida, a estrutura se apresenta, no melhor sentido do termo, bastante didática. Numa casa onde artistas se encontram exilados, Paulo Goya dissertará a um jovem ator feito por Renan Rovida —aliás grande artista do cinema e da Companhia do Latão— sobre o teatro clássico, Shakespeare, a estética teatral que não teria nada de artificial, sendo assim um espelhamento da vida real. É como se os artistas, armadfos de suas artes, estivessem esperando o chamado para a luta —a cena, a grande obra de arte de atuação junto ao mundo.
O filme seguirá trazendo, desvelados, os exercícios de atuação, os corpos em cena, as caracterizações e indumentárias, as inserções de obras visuais, sonoras, pictóricas etc. Em suma, figuras fortes do teatro contemporâneo, como Carolina Castanho, darão corpo a performances que acabam fazendo da metalinguagem um assunto que compõe a dramaturgia.
O que seria o grande enredo do filme, "A Tempestade", ganha um belo desmonte e jamais assume de todo o naturalismo da cena cinematográfica. Antes bem visto como progressista, Próspero, encarnado por Goya, agora é o rei peste, opressor que escravizou Calibã, papel de Leandro Machado, que pretende vingar a morte de sua mãe, a feiticeira Sylkorax —aliás, feita pela nossa maior atriz brechtiana, Helena Ignez.
A subversão, enfim, é o grande regente de "Deuses da Peste". A própria estrutura do filme faz, em três atos, uma série de apresentações que não parecem evolutivas como um manual de roteiro pediria, mas uma reiteração que lança algo surpreendente e feérico. A sequência final é uma catarse, um happy end por aquilo que o filme estava falando desde seus primeiros instantes —o artista na cena, a vida contra a morte.