Em "Estranho Caminho", David —papel de Lucas Limeira—, jovem diretor brasileiro, vivendo em Portugal, vem a Fortaleza (sua terra) para apresentar o seu primeiro longa em um festival de cinema. Mal acabou de chegar, as más notícias caem em seu colo: a pandemia de Covid está instalada, o festival foi cancelado e o voo de volta, idem.
O festival se dispõe a deixá-lo ficar uns dias numa pousada meio mambembe, o que não deixa de ser estranho. A rigor, a primeira coisa realmente estranha em seu caminho até aqui. A segunda, não tão rara, é o fato de ter o celular roubado de madrugada, na praia.
Na delegacia onde vai dar queixa, um quadro bem brasileiro: a delegada se preocupa mais em explicar a diferença entre roubo e furto do que com as aflições da vítima. E lança a questão: o que você fazia na praia de madrugada? Eis como uma vítima se torna culpado rapidamente quando vai dar queixa. Mas David não será preso, nada disso. A policial leva a coisa com humor, como o filme.
Com a pandemia instalada, os amigos desaparecem. Pior: a pousada deixa de fornecer alimentação —a cozinheira foi demitida. É só o começo: pouco depois o dono desaparece e ela fecha de vez.
Na rua, David topa encarar Geraldo —Carlos Francisco—, seu pai, com quem não mantém relações há anos. O reencontro, com efeito, não será fácil. Logo ao primeiro contato vemos que o pai não é pessoa de trato fácil: ele desconfia, alega que tem muito a fazer, não dá muita trela ao filho.
Mas David deve voltar a ele, em meio a seus pesadelos. Afinal, estar sem casa agora é o pior pesadelo. E sem celular. O pai se torna essencial para falar com a companheira, que vive em Portugal. "Empresta o computador?" As respostas são secas e duras: "Não vê que eu estou usando? Pra que você precisa?"
É através desse pai sempre ocupado a escrever o que chama de minhas coisas, num apartamento descuidado que Guto Parente nos conduz, com delicadeza, ao registro do filme fantástico. Diga-se que Parente é um cineasta que já transitou por vários gêneros, como se quisesse ter, da prática cinematográfica, uma experiência o mais completa possível.
Tendo começado num coletivo com outros três realizadores, evoluiu para o, digamos, drama de "Inferninho" (2018), alcançou o que se pode chamar de primeira maturidade com uma aguda mistura de comédia e terror insólito sobre a classe rica do Ceará ("O Clube dos Canibais", 2018).
Passou pelo documentário insólito sobre um jóquei cearense que passou com sucesso absoluto pelo turfe de Seul. Esse é de 2022 e um filme mais de oportunidade (o cineasta encontrou o jóquei numa viagem à Coreia do Sul): filme pós-pandêmico, num momento em que os financiamentos para cinema estavam mais do que escassos.
Já o filme de 2023, também de orçamento modesto, nos introduz ao fantástico com tão maior desenvoltura quanto se situa na pandemia de Covid-19. São frequentes os casos de pessoas que têm dificuldade para calcular o tempo depois da pandemia: algo que se passou há cinco anos essas pessoas acreditam que aconteceu há dois ou três, por exemplo.
David também perece no tempo. E o tempo é apenas a primeira de suas perdas. Ele não sabe dizer quando terá seu voo de volta para Portugal, não sabe exatamente onde mora, vaga por uma cidade deserta, onde uma ou outra pessoa que vislumbre parece mais uma aparição, um fantasma que brota do próprio rapaz.
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É certo que, entre todas as questões, espera o reconhecimento do pai. Não é fácil. Esse homem não o acolhe. Apesar das dificuldades objetivas enfrentadas por David, ele hesita em deixá-lo dormir em sua casa. A presença do filho vai atrapalhá-lo.
Existe algo de encantador, no entanto, nessa difícil relação: os desencontros entre pai e filho parecem sempre vizinhos de um encontro; os transtornos poderiam ser contornados, caso eles quisessem. Ao mesmo tempo, e até quase o desenlace, algo parece se opor a qualquer aproximação entre ambos.
À medida que essa relação se desenvolve, entre uma trava e outra, já não podemos dizer se David está sonhando, imaginando coisas, mergulhado em seus fantasmas ou nas imagens do seu próprio filme. É quando, também, fica fácil embarcar e ser levado pelo filme de Parente.
O rigor de seu trabalho nos permite, aqui, ver as janelas de um velho prédio e duvidar que ele exista, que ainda exista, ao mesmo tempo, em que sentimos o que pode haver de misterioso em seu interior. É nessa espécie de ambiguidade das coisas, de presença e ausência simultânea (da cidade, inclusive) que o filme transita com desenvoltura.