Crítica: Cuti usa a poesia para afirmar sua humanidade enquanto sujeito negro

há 1 mês 5

O ano de 1978 foi marcante na trajetória do poeta, ensaísta, intelectual e militante Cuti (pseudônimo de Luiz Silva). Foi nesse ano, convivendo no Centro Cultural de Arte Negra (CECAN), uma entidade próxima da escola de samba Vai-Vai, que ele e o amigo Hugo Ferreira iniciaram um conjunto de publicações intitulada "Cadernos Negros", marco na produção editorial e literária brasileira.

Nessas publicações seriadas que se mantém até hoje, reúne-se textos em verso e prosa que tratam do tema das relações raciais, questionando literariamente uma consagrada "literatura nacional" que marginalizou ou foi depreciativa com a autoria de pessoas negras.

A conexão de Cuti com os Cadernos e com uma escola de samba é interessante por diferentes motivos, já que ela mostra como essas agremiações possibilitam a criação de vínculos de solidariedade e fortalecimento frente às desigualdades raciais; e como se reinventam ou permanecem ativas diferentes tradições político-culturais que nutrem a vida social e as aspirações de uma coletividade.

É justamente a junção entre esses pontos e a atualidade de um poeta atento ao cotidiano que encontramos em "Ritmo Humanegrítico", novo livro de poemas de Cuti, recém-lançado pela Companhia das Letras.

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Dividida em 5 partes e com mais de 150 textos, a obra apresenta a veia poética de Cuti, sobretudo no que ela tem de trabalho com a linguagem e compromisso ético-intelectual frente a uma realidade que pode ser, muitas vezes, desesperançosa.

Se nas escolas de samba o ritmo dos instrumentos leva à apreciação musical, em Cuti não é diferente. A palavra, inclusive, é tão relevante que surge no título do volume junto a um neologismo criado pela soma das palavras humano, negro e crítico.

O ritmo do poeta, no entanto, não é das baterias carnavalescas, mas sim aquele que se faz pelo posicionamento do autor, do eu-lírico e disposição dos versos. Em outras palavras, Cuti faz uso da poesia para afirmar sua humanidade enquanto sujeito negro e, consciente da complexidade desse gesto numa sociedade racista, reconhece a literatura como meio dotado de criticidade.

Tal postura permite ler a antologia pelo prisma de um poeta ligado às contradições e dramas que afetam o nosso tempo. Assim, com oscilações entre os poemas, Cuti oferece versos que tematizam, por exemplo, o fenômeno das fake news, a drogadição, o fanatismo religioso, o perigo das redes sociais (sei que é fake/ tua felicidade no face) e até mesmo a iminência de uma guerra mundial.

Daí que, diante da vastidão de informações que assola o mundo contemporâneo, o poeta modula sua ação entre a denúncia e a criação de esperança.

Uma das referências intelectuais e políticas dos movimentos negros brasileiros, Cuti sabe, por exemplo, que o passado colonial e escravista ainda precisa ser enfrentado. Frente a isso, seus poemas conectam temporalidades distantes para encontrar na história um recurso de sobrevivência e possibilidade num mundo aos frangalhos.

A violência policial é associada aos navios negreiros ("mas o mar chega à periferia de toda cidade/ com seus navios tumbeiros") e o espírito de luta do Quilombo dos Palmares torna-se parte da identidade e do poeta.

Com versos livres, poemas ora extensos, ora curtos, abrangências temáticas, aproximações temporais e engajamento político, "Ritmo Humanegrítico" cria uma polifonia que passa pelo medo, protesto, resistência e pelas sutilezas do cotidiano. Esse ritmo do verso e das mensagens também leva a experiências sensíveis como o erotismo ou os prazeres de uma roda de samba.

Em dado momento, inclusive, o poeta traz uma delicada cena: "um beija flor de dedos/ seduz o pandeiro". Quase impossível não imaginar Cuti no importante 1978, quando iniciou os "Cadernos Negros" e a Vai-Vai foi campeã do seu primeiro carnaval.

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