"Quem pode contar a história da diáspora africana?"
Para Christina Sharpe, escritora, professora e pesquisadora dos Estados Unidos, não há uma resposta fácil a essa pergunta. A reflexão precisa passar pela questão do poder, pois é ele quem valida pontos de vista.
Seu livro "Notas Ordinárias" permite esmiuçar um ponto de vista e, através dele, identificar uma vida negra em sua complexidade, "um corpo e tudo o que isso pode significar".
Escrita a partir de 248 notas, a obra fala sobre o imaginário que permeia o seu modo de estar e se sentir no mundo enquanto corpo atravessado pela brutalidade do racismo.
Através de práticas de imaginação e liberdade, ela exercita seu poder de representar, de moldar realidades e a forma como nos vemos. Para ela, não se trata de representação positiva, "trata-se de poder e ângulo de visão".
A experiência do racismo surge como parte da ordem do dia e, através de anotações quase íntimas, nos deparamos com dores, saudades e afetos. Em seus breves registros o "tempo desmorona sobre si mesmo; não é linear; é um bumerangue".
Através de suas costuras, dialogamos com memórias e com um vocabulário cotidiano que exala cheiros, texturas e sons. A "negridade" se apresenta com "toda a sua sombra, profundidade e brilho, em todas as suas tonalidades exuberantes".
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Sharpe revisita museus, memoriais, fotografias, cartas, verbetes, listas e reflexões sobre matérias de jornal. Suas descrições falam sobre brutalidade, mas também nos apresentam a beleza enquanto prática cotidiana.
As mãos graciosas de sua mãe aparecem como uma linguagem própria e são descritas para além de um olhar pautado pela hierarquia ordenada da plantation. A beleza surge através da apresentação da coleção de alfinetes da mãe, de sua caligrafia meticulosa ou do seu amor pela simetria.
Christina e o irmão Christopher colhiam violetas no quintal e nos terrenos baldios para que "potinhos de geleia com a aparência e o sabor mais delicados do mundo" fossem feitos pela mãe. Diante do teto quase desmoronando, a solução era "plantar e montar arranjos de peônias, tulipas e zínias".
Suas notas nos permitem remodelar a própria imagem do "homembranco" —escrito dessa forma para demarcar a imbricação entre "raçasexogênero". Alguns dados saltam aos olhos: "4.400 vítimas de linchamentos". O foco, no entanto, não é a dor infligida aos corpos negros, mas as multidões brancas que "se amontoavam para testemunhar e participar de espetáculos de linchamentos".
São destaques em suas lembranças a boca aberta do "meninobranco" exalando a violência da supremacia racial. Esse é o seu ângulo de visão. Eles eram seres humanos que sentiam prazer na crueldade.
A ideia de uma branquitude intacta, em que a violência aparece como um exterior constitutivo, se desfaz e exige das pessoas brancas uma autocrítica. E se elas precisassem olhar para elas mesmas? E "se começássemos a partir de perspectivas Negras?", com a palavra escrita em maiúscula mesmo.
Em um capítulo, Sharpe se dedica à formulação preliminar de um dicionário de "negridade". Ali, a palavra imaginação significa "a gramática de uma vida possível feita ao soar da poesia", a palavra propriedade tem a ver com o roubo de terras indígenas e de corpos africanos, e o respiro é uma imensidão de pessoas negras reunidas.
A figura da mãe ressurge como parte dessa poética. Ida Wright Sharpe permitiu que a filha pudesse contemplar a própria existência pela janela, pudesse respirar; ela a deixava sonhar através dos livros. Debruçada no peitoril da janela, praticava esse exercício constante de imaginação de outros mundos.
A palavra ternura manifesta-se como contraponto à violência. Diante de cenas brutais, a figura do menino que carregava Skittles e um chá gelado, o homem que disse "estou com medo"; George Floyd que chorou chamando pela mãe.
A pergunta "eu posso viver?" reverbera. A leitura de "Notas Ordinárias" permite esboçar uma resposta a ela, pois se trata de um livro "a favor do corpo Negro, do olhar Negro e da memória Negra".