Crítica: 'Avenida Beira-Mar' é sensível ao naturalizar a juventude trans

há 1 mês 2

Em 1992, a publicidade do filme "Traídos pelo Desejo", de Neil Jordan, pedia ao público que não revelasse o grande "segredo" do longa, para não estragar a surpresa dos futuros espectadores durante a experiência fílmica. Uma certa bobagem porque o filme era excelente mesmo para quem fosse vê-lo já conhecendo antes o detalhe sexual que era guardado a sete chaves pelos produtores.

Mais de três décadas depois, o mundo mudou bastante, a ponto de questões que antes eram tratadas como elemento de mistério serem hoje abordadas de forma aberta e amplamente politizada no cinema. "Avenida Beira-Mar", estreia na direção de longas de Maju de Paiva e Bernardo Florim, é um filme abertamente em defesa do direito de uma pessoa de assumir sua transsexualidade bem antes da idade adulta –no caso, o de uma menina trans na puberdade.

No começo, acompanhamos Rebeca, garota negra de 13 anos, filha de uma mulher branca que se recupera de um câncer. Elas se mudam para o local onde a mãe viveu grande parte da infância, em um bairro praiano pouco povoado de Niterói, no Rio de Janeiro.

Rebeca logo trava amizade com Mika, uma garota que gosta de invadir casas da vizinhança. Mas não é uma delinquente: em geral, apenas se diverte com as bonecas ou roupas das meninas que moram por ali, prática à qual a mais sisuda Rebeca acaba aderindo. Ambas se tornam inseparáveis.

Lá pelo meio do filme, quando Mika apresenta Rebeca a seus pais, a coisa toda muda: ela se veste e é tratada pelos genitores como se fosse um garoto. A rigor, para o espectador que ainda não soubesse que Mika é, na verdade, uma adolescente trans, a situação ali deveria ficar esclarecida. Mas a atriz transgênero que a interpreta, Milena Gerassi, tem tal passabilidade enquanto uma menina cisgênero que a cena ganha um caráter ambíguo. E o filme dá elementos para que se pense que, talvez, ela seja de fato uma garota cis, mas que os pais criam como se fosse um rapaz.

É que existe uma subtrama não muito bem resolvida sobre uma irmã mais velha de Mika, que saiu de casa ou talvez tenha morrido, que pode induzir o público a pensar que, por luto ou pela decepção que essa primeira filha trouxe ao casal, ele possa ter preferido criar Mika como um garoto.

Provavelmente, essa ambiguidade extra não foi intencional por parte dos diretores, mas o trecho é encenado de forma que surja no filme um ar súbito de estranhamento que dá margem para essa percepção. Involuntariamente, o longa ganha um elemento extra de suspense.

Mas a dúvida logo se dissipa. Se o que em outros tempos seria um "grande segredo" desta vez não é nenhum mistério, o filme torna enigmáticas diversas outras questões menores –estas, sim, de propósito. Além do que de fato aconteceu à irmã de Mika jamais ser explicitado, o filme dá indícios não conclusivos sobre uma provável homossexualidade de Rebeca, a possibilidade de ela ser filha adotiva, a chance de o câncer de sua mãe estar voltando.

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Pensando com certa frieza sobre essas questões, todas parecem estar no roteiro gratuitamente, porque são sugeridas e logo abandonadas, mas também essas imprecisões contam a favor do filme como um todo; ecoam a confusão emocional da pré-adolescência e o destino incerto daquelas duas personagens, que se unem pela solidão enquanto párias —uma por ser trans, outra por ser negra.

Os diretores evitam uma abordagem sensacionalista sobre o que quer que seja. Os problemas causados à Rebeca por sua negritude em um meio social majoritariamente branco surgem de soslaio, sem tanto peso, e mesmo a questão trans de Mika é tratada com certa naturalidade, ainda que a rejeição familiar e a violência nas ruas não sejam negadas pelo filme. Mas também não configuram o seu cerne.

O foco é na relação entre essas duas meninas, embora no trecho final, também se amplie para o elo entre Rebeca e sua mãe, vivida com muita sabedoria por Andréa Beltrão.

O filme tem alguns problemas técnicos: a fotografia, por exemplo, é escura de uma maneira por demais descuidada, que mais atrapalha a percepção de sutilezas das performances do que propriamente passa a ideia de ambiguidade e sufocamento. Mas isso é nada perto da única cena do longa que é um real vexame, quando o roteiro insere a fórceps na boca de Rebeca uma fala citando o nome de um dos patrocinadores do filme.

Mas os acertos se sobrepõem. "Avenida Beira-Mar" ainda é um filme sem uma formatação que permita saber até que ponto o talento da dupla de diretores pode ir em obras futuras. Mas ao menos em termos de sensibilidade, já se sabe que têm o dom para lidar com questões delicadas e que ainda exigem coragem, apesar dos avanços comportamentais de nossos tempos.

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