Crítica: Arelis Uribe teve livro sobre garotas censurado por ser 'sexual demais'

há 2 meses 4

Pode ser surpreendente descobrir que "As Vira-Latas", da jornalista chilena Arelis Uribe, convidada desta Flip, foi censurado em escolas do Chile.

Este pequeno livro, premiado e republicado em vários países, foi considerado "sexual demais" para ser lido por adolescentes, que receberam uma versão com recortes, sem as partes supostamente inapropriadas para suas idades. Isso chocou até a autora, que descobriu a edição ao visitar um colégio.

Não é que haja nenhuma cena de sexo explícito. Em seus oito contos, lemos histórias de meninas, adolescentes e jovens de bairros populares no Chile descobrindo muitas formas de amor e seus desencontros, vivendo tramas e tretas comuns da vida de garotas.

"As Vira-Latas", é um título-metáfora para essas garotas que vamos conhecendo em cada conto, que vivem histórias de transição —de idade, de cidade, de vida—, de descoberta de si, de suas maneiras de amar, de ser cruel, da relação com a família e de suas sexualidades não normativas.

Na versão original, o livro se chama "Quiltras". "Quiltro" é uma palavra mapudungun, língua do povo mapuche, que significa cachorro. Na cultura popular do Chile, quiltro é um cachorro sem raça definida, de rua, um vira-lata.

Embora presente, a pobreza não é a personagem principal, é apenas um pano de fundo. Tampouco a violência é central, embora toda mulher tenha uma lembrança nojenta, como lemos já na apresentação da obra.

Em seus encontros e desencontros, as personagens vão cruzando com privilégios de classe, gênero e educação, que saltam aos olhos de quem cresceu disputando camas de solteiro com os irmãos, estudando em escolas semidestruídas com tristes bibliotecas intocadas.

Sobretudo no ensino superior, elas se encontram com uma classe de abastados, seus parentes aristocratas, passaportes carimbados, aulas de natação e existências multilíngues. Vão do fascínio inicial à tomada de consciência das imensas desigualdades.

Para algumas das garotas, que deixam de ser filhas e se tornam mães cedo demais, seus lugares sociais se aprendem em casa mesmo, sempre um lugar muito inseguro. "Minha mãe e a mãe de minha prima, tia Nena, eram esposas de homens brutos. Meu pai era uma besta, e o pai da minha prima também", diz a narradora do primeiro conto.

Essas histórias se passam no Chile entre os anos 1990 e começo dos 2000, mas poderiam se passar no Brasil. Qualquer conexão com a literatura periférica brasileira não deve ser só coincidência e, infelizmente, o racismo cotidiano parece também não ser.

Este, com suas particularidades regionais, não deixa de se intrometer, amargando descobertas amorosas. Uma das personagens, fascinada pelo toque da pele de sua amada, diz que "quando era menina" ela e suas amigas da escola, todas morenas, estavam "apaixonadas pelo único loiro do curso, que, por sua vez, era apaixonado pela única loira".

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O que se sobrepõe a tudo, no entanto, é uma delicada narrativa, para desfrutar lentamente, fazendo pausas —aproveitando sua oralidade como se tivesse ouvindo cada uma delas em um final de semana chuvoso na praia, onde amigas contam suas vidas umas às outras, com afeto.

Só assim se pode ir caminhando entre as muitas imagens de infância, adolescência e juventude que recheiam o livro.

Com essa calma, talvez alcancemos o que a autora diz em suas entrevistas, que ser mulher (ou menina, adolescente) é uma das muitas formas de ser pessoa no mundo, e uma diversidade de sentimentos e experiências perpassa essa parcela da humanidade, como passa também com outras. Neste caso, todas um pouco vira-latas.

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