"Vidas de Meninas e Mulheres" é o único romance de Alice Munro, canadense que recebeu o prêmio Nobel em 2013, em um raro reconhecimento pela Academia Sueca de um conjunto de obra composto quase exclusivamente por contos.
O livro foi o segundo lançado pela autora, editado pela primeira vez em 1971 e publicado só agora no Brasil pela primeira vez. A obra traz o olhar agudo e estilo límpido que a notabilizaram como grande prosadora em língua inglesa.
No centro está Del, a narradora e protagonista que recorda personagens e episódios de sua infância e adolescência, vividas no povoado de Jubilee, em Ontário, Canadá, num tempo que coincide, em parte, com a Segunda Guerra Mundial.
Nos oito capítulos, interligados porém independentes, grandes temas como a religião, a morte, a descoberta da sexualidade e o casamento são vistos pela lente de acontecimentos miúdos das vivências infantis, mas com o senso implacável da adulta que se volta para o passado.
A ambivalência do ponto de vista narrativo é a principal marca estilística do livro e sustenta o interesse pela leitura do começo ao fim. A segunda parte, "Herdeiros do Corpo Vivo", por exemplo, reúne memórias em torno de tio Craig, o notário do povoado.
Além de traçar o perfil do falecido, recordando diálogos que manteve com ele e comentando atividades em que esteve envolvido —a redação da história do condado Wawanash e a composição de uma árvore genealógica—, a narradora recupera personagens de seu entorno, como as irmãs de Craig, Elspeth e Grace.
O texto passa diretamente da lembrança infantil para o comentário adulto. Quando as tias lhe conferem as quase mil páginas datilografadas pelo tio sobre a história local, Del registra a solenidade pretendida para o momento.
"Porque nós temos a esperança... temos a esperança de que um dia você conseguirá concluir a obra", dizem elas, que completam: "Ele tinha o dom. Ele conseguia colocar tudo e ainda deixar a leitura gostosa. De repente você consegue aprender a copiar o estilo dele".
A narradora então registra: "Elas falavam com alguém que acreditava que o único dever de um escritor é produzir uma obra-prima".
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Esse distanciamento dos sentimentos infantis, que poderiam surgir, no trecho, no lugar da observação madura, é marcante quando se trata da mãe de Del —talvez a figura que mais lhe chama a atenção ao longo do livro e sobre quem jamais há derramamento de afeto.
Quando a mãe visita sua escola como representante da empresa para a qual trabalha como vendedora de enciclopédias, a menina vive um momento de intenso constrangimento e angústia, mas não chega a nomear esses sentimentos.
"Quem mais tinha uma mãe dessas? [...] De repente eu não conseguia tolerar nada a respeito dela – [...] acima de tudo sua inocência, seu modo de não perceber quando as pessoas estavam rindo, de achar que podia safar-se daquilo."
Embora algumas figuras masculinas ganhem protagonismo, o interesse está sobretudo nas femininas. A professora Farris, solteira, talentosa e incompreendida pelos habitantes do povoado conservador; Fern Dogherty, a inquilina da mãe, também solteira, sobre quem correm boatos de uma gravidez precoce; a própria mãe, cujas pretensões intelectuais jamais encontraram oportunidade de se fortalecer e frutificar.
Os abusos vividos por mulheres e outros sofrimentos impostos pela relação com os homens nesse ambiente pobre e provinciano se multiplicam ao longo do livro e ganham interesse também fora dele —especialmente desde este ano, quando, alguns meses após a morte de Munro, sua filha mais nova, Andrea Robin Skinner, que foi abusada pelo padrasto, tornou público que a mãe decidiu ficar ao lado do marido mesmo após tomar conhecimento do caso.
Assim como em outras conhecidas situações na literatura e nas artes, este parece ser mais um caso em que a obra supera a vida, pois o olhar que organiza essas vidas ficcionais de meninas e mulheres busca se emancipar da dominação masculina. Fina ironia, digna da pena da autora.