Como um sebo no subúrbio do Rio superou um incêndio e transformou um bairro

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Ivan Costa, dono do sebo Belle Époque Discos e Livros, conversa com um cliente enquanto entrega a uma vizinha a encomenda deixada pelo mensageiro no endereço errado. No bar à direita, administrado também por ele, um manobrista da rua abre a geladeira para tomar um guaraná. Dois amigos sentados na calçada compartilham uma cerveja.

Num dia de semana, a rua Soares, no Méier, zona norte do Rio de Janeiro, caberia em qualquer novela ou filme ambientado no subúrbio: são casas de cor ocre com cacos de vidro nos muros, poucos carros estacionados na ladeira, um colégio público e um bar de esquina.

Mas a rua tem uma diferença para as demais da região. É a única, num raio de muitos quilômetros, a ter uma livraria. Livros, se não ali, só no shopping center.

A Folha estreou a série História de Livraria, dedicada ao universo dos sebos e do garimpo de livros antigos pelo Brasil. A primeira reportagem foi sobre o Sebo do Messias, o maior de São Paulo.

Costa, 43, cresceu no Méier e escolheu o bairro para criar a Belle Époque em 2017. Antes, trabalhou em sebos no centro da cidade e vendeu livros na garupa de uma bicicleta em feiras gastronômicas, experiência que lhe rendeu o apelido de Ivan Errante, já que dividia espaço com hamburguerias e cervejarias itinerantes. "Eu era o único que não tinha itinerário", diz.

Abriu o sebo sozinho, em uma rua de pouca passagem, por oportunidade e alguma teimosia. O imóvel era mais barato do que na área comercial do Méier. Antes, o espaço abrigou um pet shop, um salão de beleza e um centro de pilates. Os negócios duravam, no máximo, dois anos.

"A livraria nunca esteve sem risco de fechar", costuma dizer Costa. "Mais de 80% do Rio é composto por subúrbios, mas os sebos e livrarias estão concentrados em menos de 20% da cidade. O nome Belle Époque veio dessa reflexão. Foi um momento de expulsão da população do centro do Rio [no início do século 20]. Dei um novo significado porque acredito que a Belle Époque somos nós mesmos, que construímos essa parte da cidade."

O sebo, com menos de 50 metros quadrados e apenas dois ambientes, oferece de livros de medicina forense a dicionários de alemão, mas exibe orgulhosamente clássicos da literatura brasileira —algumas edições quase centenárias—, livros sobre cultura popular, especialmente samba, e história do Brasil e do Rio de Janeiro.

O volume costumava ser maior, mas um incêndio destruiu o sebo em julho de 2022. O laudo da Polícia Civil atestou que a causa foi um curto-circuito em um aparelho de som. Pelos cálculos de Costa, a Belle Époque perdeu cerca de 10 mil livros e mil discos.

O fogo também queimou objetos raros que faziam parte da decoração, como bilhetes de trens urbanos do Rio de 1937. "A pessoa comprou o bilhete da última viagem do trem a vapor, descreveu o que significava a data naquele pedaço de papel, e no dia seguinte comprou o bilhete do primeiro dia do trem elétrico. Ela teve o cuidado de perceber a importância dessa mudança, que desenvolveu os subúrbios."

A decoração da livraria é feita de fotografias, recados e cartas que chegam dentro das folhas dos livros recebidos. Os objetos doados junto de coleções de livros, como telefones, globos, esculturas e quadros, também vão para as paredes e prateleiras.

"O livro de sebo traz a história da história. Além do que está escrito, há os registros da vida de outras pessoas", diz Costa.

Os livros da Belle Époque são vendidos a R$ 25, em média. As obras mais caras que já saíram dali foram uma edição de 1941 de "Onde o Proletariado Dirige...", do psiquiatra e escritor Osório César, companheiro de Tarsila do Amaral, vendido a R$ 1.200, e o disco de pequena tiragem "Vocês Querem Mate?", de 1970, de Piry Reis, vendido a R$ 5.000.

Outras obras raras, como um livro do século 18, queimaram. A Belle Époque só voltou à ativa, em janeiro de 2023, com a ajuda de doações de diferentes partes do Brasil. Àquela altura a livraria já era famosa nas redes sociais e havia construído uma rede de apoiadores, formada principalmente por uma geração de defensores do orgulho suburbano.

São leitores e acadêmicos que procuram autores como Lima Barreto e Marques Rebelo, consagrados por contos sobre as camadas populares da cidade.

O autor de "Triste Fim de Policarpo Quaresma" é uma espécie de santo de devoção do dono da Belle Époque, com retratos espalhados pelo sebo. No ano passado, Costa participou da articulação de um projeto de lei que batizou um largo no Méier, bem perto da livraria, de praça Lima Barreto.

Desde a inauguração, amigos e clientes de Costa passavam horas conversando dentro do sebo. Em dias de calor, ele vendia uma ou outra cerveja a quem chegava. Há três anos, já após o incêndio, abriu ao lado da livraria o Boteco Cultural da Belle, um bar onde são realizadas palestras, rodas de conversa e aulas de música.

Às quartas, recebe um sarau, e nos sábados de janeiro e fevereiro, há o ensaio do La Belle Bloco, cortejo dedicado ao sebo que irá desfilar pelo segundo carnaval seguido pelas ruas do Méier.

A rua Soares fecha para carros quando o evento é grande. Vendedores de comida, bebida e artesanato expõem produtos em barraquinhas na calçada, como numa quermesse.

"Não é um sebo fechado em quatro paredes", resume Costa. "Desde o primeiro mês recebemos pedidos até de comemoração de aniversário. Quando realizamos debates no meio da rua, às vezes os vizinhos saem das casas e param para escutar o papo."

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