Quais são as sementes a partir das quais germinam os mitos? A imaginação humana é um dos ingredientes essenciais para que mitologias sejam criadas, é claro. Mas, desde a Grécia Antiga, há quem proponha que ao menos algumas figuras mitológicas teriam sido originalmente pessoas de carne e osso, mais tarde transfiguradas pela tradição oral em criaturas mais do que humanas. E talvez um fenômeno desse tipo tenha acontecido na Amazônia brasileira a partir do começo do século 20: a gênese de um monstro mítico quase em "tempo real".
Dei-me conta dessa possibilidade quando resenhei, para esta Folha, o documentário "O Contato", dirigido por Vicente Ferraz. O filme narra o cotidiano indígena multiétnico de São Gabriel da Cachoeira, no Amazonas, onde línguas ameríndias de diversos troncos diferentes ainda são faladas no cotidiano. E uma coisa que aparece nas falas de diversas pessoas da região é uma sombra de medo com o nome de "Manduka" (também grafado "Manduca"). Como eu escrevi na resenha, parece uma espécie de Drácula amazônico, um monstro sádico com poderes sobrenaturais.
A análise da história oral da região e os registros escritos indicam que Manduca é o apelido de Manuel Albuquerque, um comerciante mestiço que andou pela região no começo do século 20 e se notabilizou pela crueldade no trato com os indígenas, mandando matar e torturar pessoas para cobrar dívidas.
A atuação dele é um exemplo entre outros do impacto do ciclo da borracha na Amazônia. Para expandir a produção dessa valorizada matéria-prima, o governo e a iniciativa privada arregimentaram à força muitas populações indígenas, forçando-as a trabalhar nos seringais e escravizando-as com dívidas. Tal como aconteceu com imigrantes europeus em São Paulo, por exemplo, elas só podiam comprar víveres em armazéns do próprio seringal, o que as deixava cada vez mais presas a seus patrões.
Manduca foi um dos que lucraram com esse processo. E sua crueldade se tornou tão célebre que os indígenas passaram a acreditar que ele dominava forças sobrenaturais, tornando-se incapaz de morrer de morte natural (só poderia partir deste mundo se fosse assassinado). Talvez, em parte, seja mesmo assim que nascem os mitos em sociedades de tradição oral.