Esta é a primeira vez que uma resenha musical aparece aqui no blog, e peço desculpas antecipadas a quem me lê pelo inusitado da proposta. Mas, quando a gente se apaixona, quer contar ao mundo inteiro, não é mesmo? Já faz "mais de ano" (como dizem por aqui) que me apaixonei pelo trabalho do pessoal do Coletivo Candiero, um grupo de músicos cristãos nordestinos, e gostaria de recomendar vivamente o som que eles produzem, em especial pela belíssimas ressonância poética que eles costumam dar aos temas bíblicos.
Para muita gente, música cristã ou música gospel são rótulos que cheiram a arranjos grandiloquentes e bregas, com um pé no rock de arena e outro no sertanejo universitário. Nada poderia estar mais longe da verdade no caso do Candiero.
Com base no que claramente é um conhecimento musical apurado, os músicos do coletivo metabolizaram todos os ritmos nordestinos que você puder imaginar, mais pitadas de jazz, rock e, acredite, até funk, para produzir uma mistura única, empolgante e delicada ao mesmo tempo.
É na performance e no capricho das letras, porém, que eles realmente brilham. Para quem está de fora pode ser difícil de acreditar, mas a experiência coletiva cristã contém um elemento de alegria desenfreada difícil de descrever, e é justamente isso que transparece nos ritmos e nas vozes do Candiero.
Do meu ponto de vista católico -- e, portanto, imagino, como uma espécie de "outsider" em relação ao grupo, que é evangélico --, existe uma discussão de várias décadas sobre "inculturação", ou seja, como promover o florescimento da fé cristã sem jogar fora culturas não ocidentais, mas abraçando todo o potencial que elas têm para buscar a Deus. Digo, pois, sem sombra de dúvida, que o trabalho do Candiero é a forma mais "inculturada" de arte cristã que vi até agora, em especial no álbum Colcha de Retalhos, lançado em 2023.
Mas peço licença, mais uma vez, para destacar as letras. O supracitado Colcha de Retalhos é um grande hino de alegria escatológica -- a alegria de quem crê que o destino da Criação é ser abraçado pelo amor de Deus. E, para isso, a grande imagem das letras é o banquete escatológico -- o convite que Jesus lança, em sua pregação e parábolas, para que todos venham à mesa com ele. Um banquete escatológico que, aqui no Brasil, não tem como não ganhar tons carnavalescos.
Vejam o que diz a letra de "O Velório da Solidão", por exemplo:
"Na mesa tem tudo, tem branco e tem preto
Tem homi e mulher e quem tem outro jeito
Quem fica no meio, esquerda e direita
Quem reza, quem ora, quem cala e quem treta
A mesa foi feita para quem não é
Na mesa quem puxa o coco é a fé
E quem manda é Ele
A mesa é sem fome e quem for achar rim
Que converse com o Homi"
Outra pérola no mesmo disco, chamada "Arrê", é um dos mais bonitos reflexos poéticos do conceito teológico da "kenosis", o esvaziamento humilde de si mesmo que caracteriza a encarnação de Cristo, com ecos do Evangelho de João:
"Se a lei natural dos encontros
É dar e receber um tanto
A lei Divina do encanto
É sem medida se doar
Se o grão que morre na terra
É semente que vida gera
Partiu num trem deixando um rastro
Vermelho colorindo o espaço"
Quem tiver ouvidos para ouvir, que ouça.