Camufladas na paisagem muitas vezes sem graça de São Paulo, duas casas de estética brutalista, pequenas joias da arquitetura nas quais se vê, no interior, o esplendor e a sisudez do concreto usado nas construções, abrem pelas próximas semanas para visitação.
Uma delas, no Morumbi, da arquiteta e designer Chu Ming Silveira, desenhada por ela no início dos anos 1970, era uma espécie de segredo até para os iniciados, escondida atrás de um portão numa rua insuspeita do bairro.
A outra casa, erguida em 1968, onde viveu e criou a pintora Tomie Ohtake, no bairro do Campo Belo, é mais comentada do que conhecida. A residência, projetada por seu filho, o arquiteto Ruy Ohtake, só foi acessada pelos poucos privilegiados que eram convidados para os almoços de domingo oferecidos pela artista.
Mas este cenário de exclusividade vai mudar. A partir deste domingo, será possível ver de perto esses monumentos que ajudaram a chamada escola paulista de arquitetura a entrar para os livros e fazer fama mundo afora. As residências recebem a exposição de arte e design Aberto 3, iniciativa responsável por abrir casas privadas de valor histórico.
Agora em sua terceira edição, a Aberto 3 já aconteceu, em 2022, na única casa em pé desenhada por Oscar Niemeyer em São Paulo, e em outra de Vilanova Artigas, no ano passado.
"O Brasil tem uma riqueza de arquitetura desde a época do modernismo e depois a escola paulista. Mas as pessoas não conhecem, e casas assim têm que ser valorizadas", afirma a designer de móveis Claudia Moreira Salles, uma das organizadoras da exposição. "Quando a gente esvazia [a casa], tira os objetos, você vê o projeto como ele foi pensado. Você entende a arquitetura."
A mostra deixa ambas as casas no osso, sem qualquer móvel ou decoração, para que elas sirvam de palco para as obras de arte, que às vezes ficam diminutas em comparação com o desenho único dos ambientes onde se inserem. Na residência de Silveira —nome presente na vida de milhões de brasileiros por ter inventado o orelhão, em 1972—, estão reunidos medalhões da arte do século 20 e artistas mulheres que tiveram reconhecimento tardio.
Por exemplo, há uma tela de Eleonore Koch afixada entre as prateleiras de concreto do que funcionava como estante, próxima a um bicho de Lygia Clark disposto sob a chaminé da lareira, um volume feito do mesmo material que surge do teto e invade a sala. Neste cômodo estão ainda três esculturas de Anna Maria Maiolino, laureada na Bienal de Veneza deste ano pelo conjunto de sua obra.
Num dos quartos dos filhos, há um raro aparelho cinecromático de Abraham Palatnik, enquanto na sala de jantar há só obras brancas, como uma obra da série "Droguinhas" de Lygia Clark, uma portentosa escultura de chão de Sérgio Camargo e uma pintura de Amelia Toledo. Todas as obras da Aberto 3 vem de galerias e estão à venda.
Embora seja toda feita de concreto e não tenha paredes paralelas, a casa de Silveira não lembra uma caverna, porque há entrada generosa de luz em praticamente todos os cômodos. A sensação para o visitante é diferente na residência e ateliê de Ohtake —o pé direito baixo dá a impressão de se estar num casulo, sensação acentuada pelas formas geométricas de cimento no teto.
Dito isso, a disposição das telas nas paredes da casa de Ohtake lembra mais uma exposição tradicional, descontando o fato de que não se está num cubo branco de galeria ou museu onde a arte costuma ser vista. A maioria dos trabalhos em exibição é inédita, fruto de comissionamento de artistas contemporâneos conhecidos ou em ascensão, tipo um quem é quem dos nomes mais quentes no mercado de arte agora.
Há telas feitas de cimento e madeira de Marina Hashem e uma imensa pintura abstrata de Sophia Loeb, brasileira que se formou em Londres, onde está estourando no circuito depois de passar a ser representada por uma galeria local. No jardim, ficam esculturas com os respingos derretidos de Erika Verzutti, e no antigo ateliê da artista uma obra de Carolina Cordeiro, feita com assadeiras, está camuflada no ambiente.
Como a casa foi feita em três etapas, em décadas distintas, o espaço de trabalho da artista migrou para uma área mais ampla, com mais luz natural. Ali se pode ver as tintas e pincéis usados por Ohtake, assim como ela os deixou antes de morrer, uma seleção de telas suas, maquetes de seus projetos públicos, estudos de obras e também recortes de jornal que usava como inspiração.
Obras, o consultor de arte Filipe Assis, outro dos organizadores da exposição, destaca o fato de que casas como essas ficam localizadas no meio da cidade, uma característica própria de São Paulo em comparação a projetos do tipo na Europa, situados no campo ou mais afastados dos centros urbanos.
Assis diz ainda que escolher casas de duas mulheres de origem asiática que acabaram vivendo no Brasil para sediar a mostra foi um acaso, não uma opção intencional depois de dois anos tendo arquitetos homens como estrelas da Aberto. Tanto a residência de Silveira quanto a de Ohtake, ambas mortas, chegaram a ele por indicação.
A mostra é ainda uma oportunidade de descobrir Chu Ming Silveira, pouco falada. Casada com um engenheiro, ela trabalhou por anos no setor de design de uma empresa pública de comunicação, momento no qual criou os orelhões que tomaram as ruas do país. Ela morreu em 1997, aos 56 anos.
"Ela não foi reconhecida em vida. Como trabalhava numa empresa pública, não tinha o reconhecimento da autoria [do que criava] —era o departamento de design", diz Moreira Salles, a designer. "Hoje ela teria mais oportunidades de ser reconhecida."