Carlos Miranda, o eterno Vigilante Rodoviário, morre aos 91 anos

há 3 semanas 3

Imagine um ator que incorporou seu personagem pelo resto da vida, misturando ficção à realidade. Foi o que aconteceu a Carlos Miranda, protagonista de "O Vigilante Rodoviário", primeiro seriado nacional da televisão brasileira. Na telinha, o ator Carlos vivia o inspetor Carlos, um policial exemplar que patrulhava as estradas e perseguia bandidos, coadjuvado pelo espertíssimo cão Lobo.

Na vida real, o ator aproveitou sua experiência como vigilante nas telas, prestou um concurso para a Polícia Rodoviária de São Paulo em 1965, e... passou! Comunicativo, tornou-se relações públicas da corporação. Reformado em 1989, terminou sua carreira a serviço da lei como tenente-coronel Miranda. A partir dos anos 90, passou a frequentar encontros de carros antigos vestido com um antigo uniforme e levando um Simca Chambord igualzinho ao que era usado por seu personagem no seriado. 

Inspetor Carlos (de jaqueta), Lobo e o Simca - cena do seriado de 1961-1962

Foto de: Jason Vogel

Inspetor Carlos (de jaqueta), Lobo e o Simca - cena do seriado de 1961-1962

Contrariando o lugar-comum de que "o Brasil é um país sem memória", Carlos estava sempre cercado de fãs nesses eventos. Eram senhores grisalhos que começavam a cantar o tema do seriado assim que o viam: "De noite ou de dia/ firme no volante/ vai pela rodovia, bravo Vigilante!"

Todo mundo queria uma casquinha do Inspetor Carlos, para tirar fotos, pedir autógrafo ou fazer perguntas — sempre as mesmas perguntas, 15, 20 vezes, que o ator respondia sem baixar a guarda da simpatia. Na madrugada desta segunda-feira, Carlos Miranda deixou o palco da vida aos 91 anos. Morreu em um hospital de São João da Boa Vista (SP), após um longo quadro de insuficiência renal. 

Carlos cercado por fãs durante um sessão de fotos no Rio, em 2008

Foto de: Jason Vogel

Carlos cercado por fãs durante um sessão de fotos no Rio, em 2008

Numa entrevista em 2008, com direito a um passeio no Simca pelo Aterro do Flamengo, perguntei a Carlos se não era complicado se transformar em um personagem para sempre. Ao que o ator/vigilante respondeu bem resolvido: "O que todo ator quer é fama, e isso eu consegui com um único personagem marcante."

O seriado

Carlos Miranda, antes da fama, fez de tudo nos bastidores do cinema, na década de 50. Tinha alguma experiência de atuação em teatro popular, mas precisava sobreviver e até caminhão dirigiu. Estava trabalhando como assistente de produção quando, meio por acaso, foi escolhido para ser o astro principal de “O Vigilante Rodoviário”, que estava para ser rodada pelos cineastas e produtores Ary Fernandes e Alfredo Palacios. 

Ary já tinha testado mais de 50 atores para o papel principal, quando sua esposa sugeriu que vestissem o uniforme de patrulheiro no assistente de produção Carlos. Não é que deu certo? O personagem principal se chamaria inspetor Mario, mas foi rebatizado de inspetor Carlos, por sugestão do próprio ator homônimo. A realidade começava a se misturar à ficção.

De noite ou de dia, firme no volante

Foto de: Jason Vogel

De noite ou de dia, firme no volante

Com patrocínio da Nestlé, a série nacional fez sucesso imediato, batendo recordes de audiência nas noites da TV Tupi. Apesar do êxito, o dinheiro era curto. A princípio, os veículos de cena eram emprestados pela Polícia Rodoviária de São Paulo. Havia Jeep Willys, velhos sedãs Ford americanos e uma Harley-Davidson 1952.

Em um dos episódios, Ary alugou um Simca. Daí, teve a ideia de ir à própria fábrica pedir que alguns carros fossem cedidos à produção do seriado.

Naquele início da indústria automobilística nacional, a série era uma boa forma de divulgar a marca. O fabricante emprestou cinco Simca Chambord. Dois deles, ano 1959 e pintados de amarelo e preto, simulavam carros policiais (apesar de a Polícia Rodoviária de São Paulo jamais ter usado automóveis da marca).

Até completar 90 anos, o ator levava seu Simca a eventos de carros antigos

Foto de: Jason Vogel

Até completar 90 anos, o ator levava seu Simca a eventos de carros antigos

Os Simca Chambord eram lindos. O problema era que seu motorzinho V8 Aquilon, de 2.351 cm³ e 84 cv, era fraco para o ritmo das filmagens. Os carros andavam pouco, esquentavam muito, mas o pior era a embreagem, que toda hora dava problema. Para o telespectador, porém, os Simca faziam bonito, especialmente com o simpático Lobo de copiloto.

Muito sucesso, pouco dinheiro

Os preços dos negativos subiam, mas não as verbas para produção. Apesar do tremendo êxito desde o lançamento, em 1961, a série foi encerrada no ano seguinte por absoluta falta de dinheiro, após 38 episódios.

Com o fim das filmagens, a Simca retomou os carros. Ainda houve versões cinematográficas do “Vigilante Rodoviário”, mas dinheiro, que é bom, entrava pouco. A essa época, Carlos era casado, tinha filhos e ganhava dois salários mínimos por mês. Como, na preparação do seriado, ele havia feito cursos da Polícia Rodoviária de São Paulo, tentou a prova oficial e foi admitido. Era 1965 e o personagem se tornava real.

Sucesso na TV e fizeram até gibi (1)

Foto de: Jason Vogel

Sucesso na TV e fizeram até gibi 

"Foi a melhor coisa que me aconteceu. Eu era porra-louca, metido em teatro mambembe. Pela primeira vez na vida, fui obrigado a ter horários e disciplina. Confesso que, nas primeiras saídas como policial de verdade, interpretei o Vigilante!", contou Carlos na entrevista de 2008. 

Na corporação, a carreira artística teve que ser interrompida. Mesmo assim, Carlos ainda fez participações em filmes como "Independência ou Morte" (1972) e entrou, brevemente, na febre das pornochanchadas da Boca do Lixo, com “Os garotos virgens de Ipanema” (1973).

Carlos dirigindo o Simca em 2008 - foto de Jason Vogel

Foto de: Jason Vogel

Carlos dirigindo o Simca em 2008 - foto de Jason Vogel

Comunicativo, ele foi relações públicas da Polícia Rodoviária. Reformado em 1989, terminou sua carreira a serviço da lei como tenente-coronel Miranda. Mas, num ferro-velho, havia um Simca Chambord. Carlos encontrou a carcaça e, após uma restauração de seis anos, renasceu o carro do Vigilante Rodoviário. Começava aí mais um episódio dessa história.

De volta ao personagem

Para facilitar a manutenção, o Simca 1959 ganhou motor quatro cilindros de Opala. O ator providenciou uma réplica do uniforme usado pela Polícia Rodoviária de São Paulo até 1963 e retomou seu personagem em palestras e encontros de colecionadores de automóveis.  

Muitas vezes era convidado em troca de hospedagem apenas. Em outras, ganhava cachês que mal davam para a gasolina. Em 2007, após um encontro de carros antigos, o Simca voltava para a casa do ator, em Águas da Prata (SP), sobre um reboque tipo prancha. Atingido por um caminhão, teve perda total.

Depois de um acidente, em 2007, Carlos ganhou outro Simca

Foto de: Jason Vogel

Depois de um acidente, em 2007, Carlos ganhou outro Simca

A concessionária da Rodovia SP-340, onde ocorreu o acidente, ofereceu um novo Simca ao Vigilante. Fã-clubes se mobilizaram e encontraram outro Chambord, ano 1960, em Santa Catarina. O carro estava bom de lata e com mecânica Dodge (motor V8 318 e câmbio de três marchas, com alavanca na coluna de direção).

E foi neste carro, ainda cheirando à pintura amarela e preta, que passeamos pelas ruas do Rio em 2008, com o ator ao volante. No trânsito, a passagem do Vigilante era reverenciada a todo momento, com buzinadas, acenos e gritos:  "É ele! É ele mesmo! O Vigilante Rodoviário, não lembra?"

Carlos Miranda participou de eventos até seu aniversário de 90 anos, em 2023. Aos fãs, resta o consolo de que o Vigilante estará eternamente acompanhado por Lobo, em um Simca Chambord, nas estradas da memória.

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