Desde meados de fevereiro, pesquisadores do Instituto Butantan, na zona oeste de São Paulo, adotaram, no lugar de frascos de armazenamento de venenos e caixas plásticas para manipulação das serpentes, áreas maiores onde os animais ficam soltos e tubos para coleta de sêmen (esperma) de jararacas.
Isso porque o centenário instituto paulista, referência mundial na produção de soros antiveneno e de vacinas, busca agora expandir os estudos voltados à conservação dos animais com foco para uma possível reintrodução na natureza, caso as ameaças globais, como mudanças climáticas e destruição do meio ambiente, continuem pressionando os habitats onde vivem as cobras.
O novo espaço, inaugurado ainda parcialmente ao público, conta com quatro blocos de laboratórios onde são aplicadas as melhores práticas de bem-estar animal —visando, por exemplo, reduzir ao máximo os estressores fisiológicos frequentemente associados à vida em cativeiro— e onde serão realizados diversos estudos sobre reprodução, ecologia e comportamento dos bichos.
Com uma área construída de 1.538 metros quadrados, o projeto, que custou R$ 25 milhões, teve parte das árvores presentes no instituto mantidas. A ideia é aliar bem-estar animal com conservação e educação ambiental.
O foco do novo LEEv (Laboratório de Ecologia e Evolução) são as cinco espécies de jararacas de ilhas, todas endêmicas de regiões insulares no litoral do Brasil e, por isso mesmo, ameaçadas de extinção. São elas: jararaca-ilhoa (Bothrops insularis), que vive na ilha da Queimada Grande (SP); jararaca-de-alcatrazes (Bothrops alcatraz), endêmica da ilha de Alcatrazes (SP); jararaca-de-vitória (Bothrops otavioi), encontrada somente na ilha da Vitória, no litoral de Ilhabela (SP); jararaca-dos-franceses (Bothrops sazimai), endêmica da ilha dos Franceses (ES); e a recém-descoberta jararaca-da-moela (Bothrops germanoi), da ilha da Moela, no Guarujá (SP).
Segundo Paulo Nico, diretor do LEEv e pesquisador do Butantan na área de ensino de ciências e comunicação, apesar do foco do centro serem as serpentes de ilha, outros programas de conservação não estão excluídos.
A vedete do espaço é a jararaca-ilhoa, da famosa "Ilha das Cobras", formação rochosa a 35 quilômetros do litoral sul de São Paulo. Os pesquisadores devem trazer ao instituto pelo menos 20 animais, além da possibilidade de coletar dois indivíduos por ano por mais três anos.
Assim como as demais espécies de ilhas, a jararaca-ilhoa divergiu de sua ancestral continental (Bothrops jararaca) ao final da última Era Glacial, há cerca de 11 mil anos, quando o nível do mar subiu levando ao isolamento das duas populações que, ao longo de milhares de anos, e devido às adaptações inerentes aos ambientes insulares, sofreram o processo conhecido como especiação —origem de duas espécies a partir de uma ancestral.
Um dos desafios com as jararacas de ilha é que elas tendem a ter particularidades de dieta, temperatura e tipo de vegetação encontradas apenas na ilha onde habitam, que são de difícil reprodução em ambientes em cativeiro. Por isso, apesar da inauguração oficial do LEEV em 21 de fevereiro, a expectativa é que as primeiras cobras sejam incorporadas ao novo recinto somente em até dois anos.
Há uma preocupação também na forma como os animais serão coletados na natureza, já que o ICMBio (Instituto Chico Mendes de Biodiversidade) regulamenta o número de indivíduos que podem ser coletados por cientistas. "Quanto mais rigoroso for, melhor, até porque precisa ter uma boa justificativa para tirar o animal da natureza, e temos como missão conservá-lo fora como forma de backup da natureza", diz Nico.
Cristiane Pizzutto, veterinária com longa atuação no Zoológico de São Paulo, coordena o bem-estar animal do LEEv. A partir do próximo ano, ela vai liderar uma equipe com o objetivo de investigar como a biologia das serpentes é afetada pelos aspectos fisiológicos e genéticos dos animais em cativeiro em comparação com os exemplares encontrados na natureza.
"O mais importante disso tudo é que de nada vale trabalhar projetos de conservação se os animais não têm qualidade de vida, se são submetidos a um nível de bem-estar insatisfatório, que gera estresse crônico", explica.
A ideia é criar também um biobanco de sêmen para garantir a preservação das espécies e, para isso, é preciso que os animais tenham boas condições de vida. Um espectrômetro de massa —que, no dia da visita da reportagem, ainda estava embalado pois tinha sido entregue no dia anterior—, equipamento laboratorial capaz de analisar separadamente propriedades químicas e físicas de proteínas e outros componentes celulares, deve ajudar nesse objetivo.
Aliado a tudo isso, o público vai poder aprender sobre cada uma das espécies, além de informações sobre o papel do Butantan como local de recepção de animais, sejam oriundos de tráfico de animais (por apreensão), seja pela população que, ao encontrar algum réptil ou artrópode em casa, leva para o instituto paulista.
Nesse sentido, os demais recintos vão também conter quelônios, como jabutis e cágados, lagartos e outras espécies de cobras, como jiboias e falsas-corais, para ajudar na educação ambiental e conscientização.
"Não vai ser um espaço de porta aberta, como um museu, mas teremos uma equipe de educadores e a visita é feita por agendamento com esses especialistas", explica Nico.
Pizzutto acredita que com o novo LEEv, o Butantan inaugura uma identidade conservacionista, inédita em seus 124 anos de história. "Queremos mostrar para os visitantes, para a sociedade, que esse olhar para a biodiversidade, é necessário. E, no caso, a fauna presente nos espaços do Butantan são basicamente as serpentes. Existe uma certa resistência da sociedade em relação a elas, que são animais perigosos, que é preciso matá-las, e queremos mostrar que não é bem assim", diz.