A palavra "metafísica" é vista em muitos círculos acadêmicos como uma espécie de palavrão —algo que se refere a especulações e pressupostos não verificáveis que transcendem a realidade observável. Mas um grupo cada vez maior de acadêmicos começa a explorar questões eminentemente metafísicas por meio de experimentos —materiais ou mentais— a fim de tentar desvendar os fundamentos mais elementares da natureza.
Um expoente desse grupo de engajados pesquisadores é o físico brasileiro Eric Cavalcanti, hoje na Universidade Griffith, na Austrália. Ele se define hoje como um "metafísico experimental", e seu objetivo é tentar entender o limite do possível por trás das teorias que ajudam hoje a descrever o que entendemos como realidade, a mecânica quântica e a relatividade geral.
Cavalcanti ganhou notoriedade com um artigo publicado na Nature Physics em 2020, no qual ele apresentou um experimento mental que demonstra que três pilares básicos que aparentemente se manifestam na natureza não podem ser verdadeiros ao mesmo tempo: o "não superdeterminismo" (grosso modo, algo como a rejeição da noção de que todos os eventos no Universo são totalmente pré-determinados), a "localidade" (o fato de que eventos só ocorrem por meio de interações locais, e o alcance dessas interações está limitado pela velocidade da luz) e o "absolutismo dos eventos observados" (a noção essencial de realidade, ou seja, a de que todos os eventos no Universo valem para todos, embora observadores possam discordar do momento ou do local em que se dão). Na visão dele, é algo que ajuda a explorar o que há por trás dos alicerces da física, e o que pode ou não ser logicamente consistente neles.
Que há o que explorar não há dúvida. Por um lado, a relatividade geral traz a noção de que tempo e espaço dependem fundamentalmente do observador; por outro lado, a mecânica quântica parece tratar a realidade como probabilidade e permite fenômenos difíceis de compreender, como o emaranhamento quântico, em que partículas têm de tal forma seus estados quânticos entrelaçados que, ao mexer com uma, você instantaneamente afeta a outra —ainda que ela esteja a grandes distâncias, no que Albert Einstein classificou como "uma ação fantasmagórica à distância". O fenômeno parece estar em desacordo com a localidade, já que não parece obedecer ao limite da velocidade da luz para a interação entre as partículas. O que tudo isso realmente quer dizer sobre a realidade? Cavalcanti e seus colegas nessa área tentam explorar isso ao conceber formas de testar premissas subjacentes às teorias.
O objetivo é ir além do que se fez ao longo das últimas décadas, em que os filósofos naturais concebiam interpretações para esses fenômenos quânticos —ou mesmo adotavam a postura de que não há nada a ser explicado, e temos apenas de aceitar que o limite do conhecimento é o da própria teoria, a chamada "interpretação de Copenhague", capitaneada pelo pioneiro da física quântica Niels Bohr.
A metafísica experimental busca explorar o panorama de possíveis interpretações de forma neutra, tentando eliminar alternativas e, com isso, se aproximar mais dos fundamentos que alicerçam o que chamamos de realidade.
A seguir, uma conversa com Cavalcanti.
Você começou como biofísico e então migrou para mecânica quântica, para a compreensão do funcionamento fundamental do Universo. Por que essa transição aconteceu?
Eu comecei fazendo pesquisa em biofísica durante minha graduação na PUC-Rio, como iniciação científica. Após meu mestrado, não estava me sentindo motivado para continuar no mesmo caminho experimental. Passei num concurso para uma vaga de Tecnologista na Comissão Nacional de Energia Nuclear. Foi nas horas vagas na biblioteca da Cnen que encontrei uns livros de pesquisadores como Roger Penrose e David Deutsch, que falavam sobre fundamentos da mecânica quântica, de pontos de vista completamente diferentes um do outro. Foi então que eu percebi que essas questões sobre fundamentos —que, tinham me dito na época da graduação, não eram perguntas que eram mais objetos de pesquisa—, não apenas pesquisadores de alto calibre como Penrose (que veio a ganhar o Nobel por seus trabalhos teóricos sobre buracos negros) e Deutsch (um dos fundadores da computação quântica) estavam imersos nelas, como defendendo posições diametralmente opostas! Também tive exposição a ideias interessantíssimas sobre os fundamentos da matemática, da informação quântica, e um novo universo de questões físicas e filosóficas se abriu pra mim. Foi aí que eu senti que havia achado o meu "chamado", e resolvi fazer um doutorado em fundamentos da mecânica quântica. A Universidade de Queensland, na Austrália, foi um lugar ideal pra isso.
Seu campo é descrito como metafísica experimental.
Não é possível fazer física sem metafísica. O que se pode fazer é física sem se atentar aos pressupostos metafísicos implícitos em um ou outro ponto de vista. Mas é mais interessante estar consciente dessas premissas, trazê-las à tona. Até mesmo para abrir oportunidades de explorar alternativas.
Durante boa parte do século 20, a mecânica quântica foi abraçada pela maioria dos físicos com a interpretação de Copenhague. A metafísica experimental busca quebrar esse paradigma? Sente que ela vem ganhando espaço desde que você publicou sua tese de doutorado sobre ela, em 2007?
Pesquisa na área de fundamentos realmente está ganhando mais espaço e respeito. Em parte por estar vindo a cabo do crescimento da pesquisa em informação quântica, que principalmente nos últimos anos está ganhando investimento cada vez maior. Muitos estão percebendo que as pesquisas em fundamentos, como os experimentos com emaranhamento quântico visando violar as desigualdades de Bell, que levaram o Nobel em 2022, em parte impulsionaram o desenvolvimento da informação e computação quânticas, que estão agora começando a gerar resultados tecnológicos. Mas a metafísica experimental busca mais que quebrar o paradigma da interpretação de Copenhague. O objetivo é tentar explorar o panorama de interpretações ou teorias, de uma forma filosoficamente bem informada. As perguntas são do tipo: que conjuntos de hipóteses sobre a realidade são internamente consistentes, e consistentes com experimentos? O objetivo é eliminar os erros, e entender as alternativas que restam. Não é achar mais uma "interpretação de estimação" para se tornar o novo dogma. Nesse sentido, embora metafísica experimental tenha "metafísica" no nome, ela busca não tomar posições metafísicas como inquestionáveis.
Seu trabalho mais celebrado, publicado na Nature Physics em 2020, traz um experimento mental que demonstra que três pilares básicos que aparentemente se manifestam na natureza não podem ser verdadeiros ao mesmo tempo: o "não superdeterminismo", a "localidade" e o "absolutismo dos eventos observados". O primeiro teria relação com a mecânica quântica, e os dois outros vêm da relatividade. Confirmar que todos os três não podem ser reais ao mesmo tempo não indicaria que as teorias são irreconciliáveis? Seria a proclamação da morte dos esforços de unificação ou da busca por uma teoria da gravidade quântica?
Não a proclamação de morte, mas implica que, um, se as desigualdades não forem violadas, a mecânica quântica não é aplicável universalmente, ou, dois, se forem violadas, é difícil evitar algum tipo de conflito com a relatividade —a não ser possivelmente com alguma forma de retrocausalidade ou superdeterminismo (que não são parte nem da mecânica quântica nem da relatividade). Mas veja que isso não significa a morte da busca pela unificação. Pelo contrário, indica quais são as direções possíveis de unificação. Significa que algum princípio básico de uma ou outra teoria terão de ser violados na sua unificação.
Voltando talvez à pegada mais epistemológica da interpretação de Copenhague, será que o problema do paradoxo entre três características mencionadas no seu artigo de 2020 que se manifestam na natureza, mas nunca ao mesmo tempo, não está no mundo e sim nas limitações impostas pela nossa compreensão? Como diz Neil deGrasse-Tyson, o universo não tem a menor obrigação de fazer sentido para nós.
Eu acho esse tipo de ideia um derrotismo desnecessário. Da mesma forma, poderíamos dizer que não evoluímos para entender quase nada que a ciência descobriu. A evolução não nos equipou de meios de voar para o espaço e ver que a Terra é redonda, mas a ciência nos deu o conhecimento para alcançar isso. A evolução não nos equipou para viajar à velocidade perto da luz e entender diretamente que o tempo é relativo, para ver átomos a olho nu, não nos equipou com vidas de bilhões de anos para experimentar a expansão do cosmos desde o Big Bang. Mas nós entendemos isso tudo agora, porque a evolução nos equipou com inteligência. E com ela podemos agora entender a própria evolução natural e até mesmo começar a domá-la com a engenharia genética. Claro que "o universo não tem obrigação" de nada. Mas dado que nós entendemos todas essas coisas, o argumento de que não somos capazes de entender algum fenômeno só por que a evolução não nos equipou com alguma faculdade especial de visualização desse fenômeno não tem muita força pra mim.
Isso, enfim, leva ao que me parece ser um ponto central da discussão: a importância do observador. A mecânica quântica dita que a realidade depende essencialmente do observador, sem o qual ela permanece probabilística. É a presença do observador que converte o quântico em clássico.
Essa afirmação é em si baseada em uma determinada interpretação. Em diversas interpretações, como a de Everett, ou a Bohmiana, o "observador" em si não tem um papel especial, e nem existe uma conversão do quântico pro clássico, estritamente falando —a função de onda nunca "colapsa" nessas interpretações. O que acontece é que elas precisam explicar porque o mundo parece clássico, enquanto na realidade seria sempre quântico.
Mas o que se pode qualificar como "observador"? Físicos mais conservadores costumam pensar que talvez qualquer interação entre partículas capaz de perturbar um emaranhamento possa se qualificar como "observador". Outros ousam sugerir que uma mente consciente, realizando experimentos e interagindo com seus arredores, é necessária como observador. A velha discussão Einstein-Bohr... Qual é sua visão sobre essa questão?
A minha visão é a de tentar trazer dados experimentais para esta questão. Não existe um consenso nem mesmo sobre se existe de fato um colapso da função de onda, ou apenas um colapso aparente, e se existe, não há nenhum consenso sobre o que seriam as caraterísticas necessárias para um observador causar esse colapso. O nosso projeto experimental é de tentar realizar experimentos com sistemas cada vez mais complexos, com cada vez mais características de um "observador". Se em algum momento a existência de um observador causa um colapso objetivo, determinando o fim do limite de aplicabilidade da mecânica quântica, nós queremos descobrir isso experimentalmente.
Para terminar, um pensamento daqueles que tiram o sono... E se o Universo todo for composto por uma enorme teia de emaranhamentos quânticos que, por meio da nossa intervenção como observadores, sofrem o colapso de sua função de onda e ganham um aspecto "realista", com passado e futuro estabelecidos instantaneamente, sem qualquer respeito à localidade (ela mesmo fruto desse colapso), convertendo-se em uma realidade superdeterminista conforme é observado, e não antes ou depois? E se houver um Universo desses para cada observador?
Eu não sei se entendi exatamente a teoria metafísica que você está propondo aqui, mas me parece que você está ao mesmo tempo considerando a possibilidade de colapso da função de onda, não localidade, superdeterminismo, e violação de absolutismo de eventos observáveis. Se cada uma dessas possibilidades é uma pílula difícil de engolir, a possibilidade que você está descrevendo parece ser tomar não apenas ou a pílula azul ou a vermelha —na metáfora de Matrix— mas ao mesmo tempo a azul, a vermelha, e por boa medida também uma roxa e outra verde!