Após participar do sequenciamento genético do vírus da Covid, em 2020, Jaqueline Goes de Jesus viu sua vida se transformar completamente. Ela recebeu homenagem de escola de samba, virou personagem de Maurício de Souza e ganhou uma versão própria da boneca Barbie.
Biomédica formada pela Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública, a pesquisadora e professora tem doutorado em patologia humana pela UFBA (Universidade Federal da Bahia) e pós-doutorado pela USP (Universidade de São Paulo).
Filha de um engenheiro e uma técnica em enfermagem, Jaqueline sonhava com o jaleco branco desde muito jovem. Uma de suas primeiras inspirações para trilhar os passos na área da saúde foi sua própria mãe, que tem graduação em pedagogia, mas seguiu carreira entre plantões e histórias nos hospitais.
Por isso, assim que saiu da escola, teve certeza que seria médica e até prestou vestibular para a profissão. De primeira, não passou e decidiu ir para o cursinho.
No percurso diário para as aulas preparatórias, uma outra mulher deu à Jaqueline, sem saber, a certeza de que ela trilhava o caminho certo. Era uma vendedora de livros dentro de um ônibus que ela pegava todos os dias e que dizia ter a receita para a cura do diabetes em um dos exemplares à venda. A jovem, um dia, decidiu intervir.
"Disse que o trabalho que ela fazia era importante, porém informei que era impossível encontrarem a cura do diabetes em receitas. Elas podem melhorar a qualidade de vida, mas expliquei que a cura ainda não existe", diz ela, que ganhou o Prêmio Todas na categoria Ciência e Tecnologia. A mulher a agradeceu e perguntou se ela estudava na área da saúde.
Sinto que as pessoas tinham dificuldade de me enxergar enquanto pesquisadora e o mesmo não acontecia com homens que tinham o estereótipo perfeito de cientista branco, dos cabelos grisalhos e mais velho
Conheça o Prêmio Todas
Distinção, idealizada pela iniciativa Todas, premia mulheres em oito áreas do conhecimento, divididas na categorias Ciência e Tecnologia, Cultura, Economia, Educação, Energia Limpa, Esporte, Política Pública e Saúde. Também foi escolhida a personalidade do ano. Ganhadoras foram eleitas a partir de júri composto por jornalistas, empresárias, ativistas, acadêmicas e membros do terceiro setor.
Ainda nas aulas, Jaqueline foi apresentada por uma de suas professoras à biomedicina quase como uma terceira opção de curso. A segunda foi enfermagem, na qual chegou a se matricular, mas desistiu no mesmo dia por ter sido aprovada em biomedicina.
Na graduação, teve também contato com análises clínicas e ali decidiu que queria ser pesquisadora. No mesmo período, participou de processos para trabalhar no laboratório da Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz), momento em que começou a sentir a diferença em relação ao seu gênero e à cor de sua pele.
"Sinto que as pessoas tinham dificuldade de me enxergar enquanto pesquisadora e o mesmo não acontecia com homens que tinham o estereótipo perfeito de cientista branco, dos cabelos grisalhos e mais velho", afirma.
Já nas primeiras experiências em laboratórios, Jaqueline diz ter entendido ser um ponto fora da curva e que as pessoas que mais se pareciam com ela naquele espaço eram aquelas que faziam, principalmente, serviço de limpeza.
Para lidar com os desafios estabelecidos, livros, matérias de jornais, redes sociais e apoio psicossocial ajudaram a jovem cientista no chamado "letramento racial", que tem como objetivo levar os interessados a compreender de forma crítica as relações raciais.
"Comecei a entender que comentários e piadinhas ouvidos ao longo da vida eram misóginos e racistas. Na época, sorria e acenava porque tinha medo de perder a oportunidade de estar ali, de ser expulsa e de perder a carreira", diz.
Alguns profissionais, no entanto, ajudaram a biomédica a não desistir da carreira e, inclusive, a inspiraram a continuar, como uma das professoras que teve no doutorado. "Eu a achava extraordinária. E, depois, estive neste lugar. Olhava para trás e me via seguindo exatamente os passos da professora Aline, até no jeito de me vestir", afirma.
A pesquisadora também integrou o projeto Zibra, percorrendo o Nordeste para sequenciar o genoma do vírus da zika. O interesse pela pesquisa com arboviroses surgiu, principalmente, por causa do caráter social das doenças.
"São doenças sazonais que estão muito ligadas ao ambiente, aos vetores, à questão climática, à predisposição da população em relação às ações de combate ou não", explica.
Na equipe que sequenciou o vírus da Covid no Brasil, Jaqueline dividiu bancada no Instituto Adolf Lutz com a também cientista Ester Sabino que, inclusive, diz que o mérito do feito em tempo recorde é todo da soteropolitana e, cada vez mais, é necessário incentivar que mulheres trabalhem em grupo.
"É uma característica da mulher saber trabalhar em grupo, ser sistemática, não desistir. Então, é importante que elas procurem outras mulheres para ajudá-las em momentos de dificuldade para que tenhamos mais alunos como a Jaqueline", afirma Ester.
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Para o futuro, a biomédica baiana diz querer, inclusive, trabalhar apoiando outras mulheres que também querem fazer parte da ciência, em especial, aquelas que vieram de uma realidade semelhante à sua.
"Assim como tive oportunidade, incentivo e uma rede de apoio que me permitiu chegar nesse lugar, acredito que ser essa plataforma de oportunidade para outras meninas com realidades parecidas com a minha seria o ideal", diz ela.
Em 2021, durante a pandemia, a biomédica migrou temporariamente para o Reino Unido para aperfeiçoar suas técnicas de sequenciamento.
"Fui para lá me especializar nisso, mas voltei para o Brasil para trazer as técnicas para cá", afirma. "Acredito que a gente precisa investir bastante aqui."
Falar de ciência, especialmente no Brasil, sempre envolve questões políticas para Jaqueline. Os últimos anos foram difíceis e intensificaram a fuga de cérebros —fenômeno em que cientistas preferem trabalhar em países com mais recursos.
Ela diz ver melhora no cenário, com um esforço para trazer de volta incentivos para a ciência. No entanto, a pesquisadora afirma que ainda não é o suficiente.
"Sinto que caminhamos para tentar recuperar esse retrocesso que a gente teve aí em quatro anos. A gente retrocedeu 20, 25 anos de pesquisa científica", diz.
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