O barro é memória e território, molda corpos e histórias. Em meio a esse material bruto e ancestral, Marcelino Melo, o Quebradinha, encontrou o impulso para sua primeira exposição individual. "Etnogênese – O Que É e O Que Pode Ser" nasce de uma faísca despertada em um espetáculo teatral e se transforma em uma pesquisa que o acompanha desde março de 2023. O termo etnogênese, que evoca o surgimento de identidades, agora dá nome à mostra que ocupa o Museu de Arte Contemporânea de Niterói (MAC).
A exposição apresenta 43 obras que percorrem o universo das periferias, com quadros, vídeos, fotografias e instalações. O trabalho de Marcelino remonta à arquitetura das favelas, onde casinhas de barro ganham vida e formato humano. Nascido no sertão alagoano, o artista cria uma ponte entre o que é lúdico e o que é visceral, propondo uma nova visualidade para os corpos que habitam esses espaços. A performance que abre a mostra atravessa o MACquinho, unidade no Morro do Palácio, e chega ao museu principal, trazendo as ruas para o centro da arte contemporânea.
O artista busca, em suas obras, traduzir visualmente o conceito de etnogênese. O corpo periférico, feito de barro, emerge da arquitetura das favelas, transformando-se em um ser híbrido, carregado de afetos e memórias. A exposição é marcada pela representação dessas "faces", personagens que nascem das casas-casulos e tomam forma como figuras humanas. A instalação externa no MAC reforça essa proposta, levando o visitante a um mergulho sensorial.
A curadoria de Luiza Testa, Patricia Borges e Emicida estabelece um diálogo direto entre o público e a arte periférica, sem subestimar as narrativas ali presentes. O objetivo é popularizar o conceito acadêmico de etnogênese e permitir que as pessoas se reconheçam nas obras, enxergando suas próprias histórias refletidas ali. As ações educativas propostas no MACquinho ampliam essa conexão com a comunidade local, fortalecendo o elo entre arte e cotidiano.
Emicida, em sua primeira experiência como curador, destaca a necessidade de criar intersecções entre mundos. Para ele, a arte de Quebradinha já transcende as galerias e museus, trazendo à tona reflexões sobre a presença das favelas nesses espaços. A curadoria busca evitar clichês, construindo uma experiência contemporânea que provoca o público a questionar a ausência de periferias nos grandes centros de arte.
A música acompanha o processo criativo de Marcelino, que se inspira em figuras como Chico Science, Nação Zumbi e Racionais MCs. Essas referências se somam a literaturas como a de Carolina Maria de Jesus e à canção "Zé do Caroço", de Leci Brandão, que empresta seu nome a uma das obras da exposição. O diálogo entre som, palavra e imagem se desdobra em cada obra, criando uma narrativa múltipla e diversa.
O barro, elemento essencial no trabalho de Marcelino, é tratado como metáfora da vida periférica. Ele está no chão e nas paredes das favelas, e também no telhado dos bairros nobres. O artista revisita sua infância no sertão de Alagoas, onde brincava com o barro, e o transforma em um símbolo de pertencimento e afetividade. A cor laranja do barro é associada à pele, à resistência e à memória coletiva dos que vivem nas margens.
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A exposição também destaca a violência e a ousadia presentes no cotidiano das periferias. Uma das obras traz uma pistola pendurada, refletindo a ambiguidade da arma no imaginário popular: ora como instrumento de poder, ora como símbolo de opressão. A mostra propõe essa dualidade como parte do que "é e o que pode ser" nas vivências periféricas, deixando o público livre para interpretar esses objetos e suas conotações.