Memória, essa série da Netflix.
Lembro, nítidos como anteontem, dos meus primeiros dias em Barcelona, mais de uma década atrás.
Era julho, pleno verão, e minha primeira vez no viejo continente.
Até hoje persigo, como amante nostálgica, aquele exato tom de dourado do entardecer filtrado pelas árvores da rua Argentería, durante um passeio pelo bairro turístico-medieval do Borne.
No romance da minha memória, suaves raios de sol ainda dão vida a pequenas motas de polvo (partículas suspensas de pó) -- dançantes, lentas, sutis, com sua calma de catedral, pontuando um verão ameno e inesquecível.
Pois essa lembrança idílica não se parece nada com o que ora nos assola na cidade condal.
Nesta terça-feira (30), por conta das temperaturas extremas, a prefeitura de Barcelona lançou a chamada "Fase de Alerta Diurna do Plano Calor" e o plano de "Emergência por calor intenso por noites tórridas do plano calor".
Em português claro, são protocolos públicos ativados quando as temperaturas ultrapassam certos limites, e visam dar mais segurança à população e ampliar medidas para minimizar, por exemplo, o risco de incêndios.
"NOITES INFERNAIS"
As tais noites tórridas, também chamadas de "equatorianas" -- e que não têm nada de sexy, apesar do nome -- são aquelas em que as temperaturas médias entre 24h e 6h da manhã superam os 25 graus (nos últimos dias, superaram os 28).
A frequência desse fenômeno se quintuplicou na última década (1991-2020), segundo informe elaborado pelo Observatório de Sustentabilidade (OS) espanhol, e se acelerou especialmente no último biênio -- de 179 noites tórridas registradas em 2022, passamos a 240 em 2023.
Aliás, peraí que o vocabulário on fire não termina aqui: em vários lugares da Europa também se usa o termo "noites tropicais" para temperaturas médias acima de 20 graus (mais comuns no início do verão).
E, supra-sumo dos lençóis ensopados, por aqui existem também as "noites infernais", quando os termômetros ultrapassam os 30 graus.
Em 2023, as cidades espanholas mais vitimadas por noites infernais foram Barcelona, seguida de Tenerife e Málaga.
As temperaturas noturnas extremas durante o verão são mais comuns na costa mediterrânea, mas também há registros de picos de calor cada vez mais frequentes em zonas nortenhas como Cantábria, tradicionalmente mais frescas, nas últimas duas décadas.
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CALIMA E REFÚGIOS CLIMÁTICOS
2023 foi o terceiro verão mais quente já registrado na Espanha desde que começaram ser realizadas medições oficiais, em 1961.
Segundo análise do Observatório, desde 2015 também vem aumentando o número de dias por ano que superam os 45 graus em todo o país.
Esta semana, esperam-se temperaturas diurnas de mais de 40 graus em alguns pontos da Espanha e Catalunha.
O calor é agravado pelos ventos que vêm da África e pela poeira do deserto do Saara, que tinge o horizonte de uma neblina terrosa-alaranjada e é conhecido por aqui como "calima" (segundo a RAE, do latim caligo: escuridão, névoa, neblina).
O Departamento de Urgências e Emergências Sociais (CUESB) de Barcelona, junto com a proteção civil e a Cruz Vermelha, mobilizou equipes para distribuir chapéus e garrafas d'água e informar pessoas em situação de vulnerabilidade sobre os refúgios climáticos criados pela prefeitura.
Esses "refúgios" são basicamente pontos espalhados por toda a cidade, em espaços públicos como bibliotecas, museus, centros cívicos e parques, onde as temperaturas são amenas e se dispõe de sombra, área de descanso e acesso a água potável.
Do ano passado pra cá, houve um aumento de mais de 50% de locais do tipo, que passaram de 234 a 354 em 2024. O plano dos refúgios estará ativo até meados de setembro, coincidindo com o fim do verão e começo do ano letivo espanhol.
O objetivo é que a quase totalidade da população tenha acesso a um recurso desses a menos de 10 minutos de onde estiver.
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-- Mas como assim, você tá com calor? Você é brasileira!!
Quaaantas vezes escutei isso de estrangeiros cá nazoropa quando me viam queixando-me do calor ou sofrendo e derretendo extravagantemente.
Na hora de ir pra rua, meu kit mínimo tem sido boné, protetor solar e leque ((surpreendentemente eficaz, por sinal)). Quando posso escolher, só saio antes das 8h ou depois das 20h, quando o sol começa a dar trégua.
Dormir também tem sido um desafio para os muitos que não temos mais recursos do que um ventiladorzinho wec wec que mal faz cosquinha nos pelinho do braço.
Em casa, o termômetro da sala facilmente tem superado os 30 graus nas últimas noites.
Há um par de dias, desesperada y suando em bicas (((em bicas, señoras e señores, com direito a gotículas de suor no bigode e pijama colado nas costas))), peguei meu travesseiro e tapetinho de ioga e fui dormir no quintal.
Acordei desconjuntada e surrada, mas livre da sauna em que se transformou meu quarto pela manhã.
Pouco antes de adormecer, aliás, contemplando alguma estrela e sendo cegada pela luz de interrogatório do poste da esquina, ainda cantarolei uma cançãozinha de ninar, que hoje soa até ingênua, e que ouvi mucho quando era uma criança-teen dormindo mais fresca: Rio, 40 graaaaus, cidade maravilha, purgatório da beleza e do caaaaaos...
... mudando a letra um pouquinho.