Augusto de Carvalho foi até a saliva de mosquitos buscar respostas para leishmaniose

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Foi em uma pequena localidade chamada Corte de Pedra, no município baiano de Presidente Tancredo Neves, que Augusto Marcelino Pedreira de Carvalho entendeu qual era seu caminho. Ao ver a realidade da leishmaniose tegumentar no lugarejo, decidiu dedicar a vida para a pesquisa dessa doença negligenciada.

Pesquisador da UFBA (Universidade Federal da Bahia) e da Fiocruz Bahia, Carvalho é um dos nomes escolhidos para participar da série Folha Descobertas, iniciativa da Folha em parceria com o Hospital Israelita Albert Einstein.

A pesquisa e a área de saúde sempre estiveram presentes na vida de Carvalho. Vieram do pai e da mãe, respectivamente. A leishmaniose veio depois, durante a graduação, em uma visita a Corte de Pedra.

O local, no qual a Leishmania braziliensis é a principal causadora da doença, tem um histórico de muitos casos e de formas muito graves de leishmaniose —há descrição na região, por exemplo, de gente com centenas de lesões na pele.

Ali Carvalho diz ter encontrado não uma doença negligenciada, mas pessoas negligenciadas. "Você tem um baixo investimento em educação, a pobreza é grande nessa população e também tem uma baixa infraestrutura", afirma o pesquisador. "Vi o que esses pacientes passavam."

Segundo a OMS (Organização Mundial da Saúde), doença negligenciada é uma classificação dada a um grupo de condições de saúde causadas por diversos patógenos em potencial e normalmente prevalentes em comunidades mais pobres de áreas tropicais, geralmente em países de renda baixa ou média.

E foi então que Carvalho começou a se dedicar aos mecanismos imunológicos associados ao desenvolvimento e à gravidade da doença. Afinal, para pensar em qualquer melhoria em relação aos impactos pela leishmaniose, antes de tudo, era essencial entender a imunologia básica da condição.

Ao ser contaminado, o organismo humano tem uma resposta imune inicial que destrói o parasita, mas que é exacerbada e forma uma inflamação crônica, lesionando o tecido.

O grupo de pesquisa de Carvalho e outras equipes conseguiram mostrar algumas das moléculas inflamatórias importantes nesse processo, como o TNF (fator de necrose tumoral, na sigla em inglês), o IL-1β (Interleucina 1-beta), linfócitos T CD8 citotóxicos e as células NK ("natural killers", ou assassinos naturais). Elas, basicamente, migram para o local da lesão e destroem o invasor e as células humanas junto.

"Isso tudo oferece aquele ambiente inflamatório. Você tem a produção de citocinas pró-inflamatórias, que são proteínas do nosso sistema imune, que vão contribuir para essa manutenção dessa inflamação crônica", diz o cientista.

A ideia é que, ao conhecer o processo imune por trás da condição, seria possível, em tese, agir sobre ele para controlar a doença. Uma possibilidade, testada pela equipe de Carvalho, seria associar terapias imunomoduladoras aos tratamentos convencionais.

Por exemplo, em um dos projetos de sua equipe, foi desenvolvido um gel com uma proteína imunomoduladora chamada de SM29. Em testes em Corte de Pedra, os pesquisadores viram um aumento da taxa de cura (de 45% para 70%) e uma redução de cerca de 50% no tempo para tal.

Em outra pesquisa, descobriram como uma droga para diabetes podia diminuir o processo inflamatório nos pacientes.

Carvalho e sua equipe quiseram, porém, olhar a leishmaniose ainda mais de perto. Chegaram à saliva do mosquito transmissor na região, o Lutzomyia intermedia.

Em uma pesquisa premiada pela Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior), em 2018, o cientista conseguiu encontrar uma proteína na saliva do mosquito que funciona como uma espécie de marcador de exposição. Basicamente, a pessoa picada pelo bicho cria anticorpos contra essa proteína.

Mas, ao observar cerca de 300 pessoas por cinco anos, descobriram algo mais intrigante ainda.

A resposta imune [contra a proteína] favorece a multiplicação do parasita e aumenta o risco de desenvolvimento da leishmaniose cutânea. É a saliva que modula a resposta imune do hospedeiro, ou seja, ela modifica essa resposta imune.

Com o conhecimento sobre essa proteína, torna-se possível, por exemplo, monitorar e mapear quais são as áreas de maiores riscos de desenvolvimento da doença e elaborar medidas de proteção para que isso não ocorra.

O problema do tratamento

Um dos grandes problemas em relação à leishmaniose tegumentar, segundo o pesquisador da Fiocruz, é exatamente o tratamento —como ocorre em outras doenças negligenciadas.

A principal forma de lidar com a leishmaniose no Brasil é o uso do antimonial pentavalente, diz Carvalho.

E o problema começa com a aplicação da medicação, feita através de injeções, que podem chegar a ser diárias, por até 30 dias seguidos, dependendo do tipo da doença.

"Esses indivíduos moram no campo, numa zona rural, então eles geralmente se deslocam para receber o tratamento", afirma o pesquisador, referindo-se à dificuldade para manutenção do tratamento.

Além disso, há outras medicações mais específicas e com maiores taxas de cura do que o antimonial pentavalente. Para se ter ideia do tamanho do problema: na leishmaniose cutânea clássica, na região de Corte de Pedra, o pesquisador da Fiocruz diz haver uma falha terapêutica de cerca de 50%. Quando se trata de leishmaniose mucosa e disseminada, o valor chega a 70%.

"É um medicamento muito antigo, mais de 70 anos de uso, com muita toxicidade, mas sem muita efetividade, sem muitos resultados interessantes. E, mesmo assim, ele continua sendo o tratamento escolhido pela maioria dos países", afirma o cientista.

Com isso em mente, uma das linhas de pesquisa das quais Carvalho faz parte visa buscar desvendar os fatores imunológicos associados à falha terapêutica.

"Conseguimos predizer a falha terapêutica, saber quem é o paciente que vai falhar a terapia convencional com antimonial pentavalente, e com isso podemos, hoje em dia, identificar esses indivíduos e já tratar com uma droga que possa ter uma maior taxa de cura", diz.

Leishmaniose

A leishmaniose é uma doença causada por protozoários Leishmania e transmitidos ao ser humano pela picada de flebotomíneos, conhecido em algumas regiões como mosquito-palha.

Quando falamos da leishmaniose tegumentar, a mais comum no Brasil, a pessoa infectada pode apresentar feridas arredondadas com bordas elevadas e vermelhas, com aspecto de úlceras —elas, normalmente, não doem. Também podem ser afetadas as mucosas, como nariz e boca. As lesões podem ser únicas, múltiplas, disseminadas ou difusas.

Existe também a forma visceral da doença, com altíssimas taxas de mortalidade quando a condição não é tratada. A transmissão é a mesma, mas, nesse caso, a contaminação é pela Leishmania infantum (no Brasil e na América Latina) ou pela L. donovani e os órgãos internos são afetados, especialmente o fígado, o baço, os gânglios linfáticos e a medula óssea. A febre é um sintoma dessa forma da doença e raramente há lesões na pele.

Futuro

A leishmaniose é uma doença que, em teoria, poderia ser evitada através de uma vacina —ainda inexistente—, considerando que pessoas infectadas adquirem proteção imunológica. Mesmo esse não sendo o objetivo central de Carvalho, ele afirma que suas pesquisas, junto ao trabalho de outros grupos, podem ajudar a chegar ao imunizante.

Porém, novamente, entre aí a questão de se tratar de uma doença negligenciada, com poucos olhos —proporcionalmente— observando atentamente.

Independentemente da forma, o objetivo de Carvalho, e o que o encanta, é ver suas pesquisas saindo da bancada e ajudando as pessoas.


Folha Descobertas

A série apresenta, quinzenalmente, os perfis de dez jovens pesquisadores brasileiros de diferentes áreas de atuação e regiões do país. Para chegar aos nomes deles, a seleção partiu de indicações de um comitê formado por figuras de destaque do cenário científico nacional.

A série Folha Descobertas é uma parceria com o Hospital Israelita Albert Einstein

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