Crises mostram que o jogo de forças geopolíticas tem se transformado. E a literatura não está fora disso. A Ásia deve, cada vez mais, se encaixar no mundo como protagonista de produção de conhecimento, desempenhando papel crucial nas tendências artísticas e culturais.
É neste contexto que Han Kang, autora de 53 anos nascida na cidade de Gwangju, foi anunciada nesta quinta-feira como vencedora do Nobel de Literatura.
Se tomarmos o prêmio como um reflexo da cultura literária de nosso tempo, a pergunta é: por que um júri europeu premiou, pela primeira vez, uma autora sul-coreana?
Filha do romancista Han Seung-won e formada em literatura coreana pela Universidade de Yonsei, ela começou publicando poemas na revista Literatura e Sociedade em 1993 e logo passou aos contos com "Amor de Yeosu", de 1995, e em seguida ao romance —certamente o gênero que a conduziu ao Nobel.
Kang é editada no Brasil pela Todavia, que já publicou três desses romances, "A Vegetariana" em 2018, "Atos Humanos" em 2021 e "O Livro Branco" no ano passado. Todos eles foram traduzidos direto do coreano, por Jae Hyung Woo, Ji Yun Kim e Natália T.M. Okabayashi, o que representa um avanço em relação às práticas editoriais de há algumas décadas atrás. A editora ainda prevê lançar seu livro mais recente no primeiro semestre de 2025.
A escritora vive em Seul, leciona no Instituto de Artes de Seul e sua literatura está de fato inserida no contexto sul-coreano. Isso é relevante porque, quando o Nobel privilegia autores não ocidentais, eles são diaspóricos e preferencialmente de expressão inglesa. O último autor de origem asiática premiado foi Kazuo Ishiguro, em 2017, e sua produção se insere no contexto britânico.
Em nosso mundo interconectado e multicentrado, a influência asiática é incontestável, então não espanta que a literatura dali passe a ser reconhecida de forma mais efetiva pelos grandes prêmios internacionais. Kang personifica essa nova realidade, na qual um novo imaginário afetivo e crítico encontra um espaço fértil na escrita contemporânea, além, é claro, da música pop e do cinema.
Nesse caso, pesou também a ressonância da escrita de Kang com questões caras às mulheres, aliada a uma prosa que, apesar de acessível, é surpreendente e cuidadosamente urdida. Seus romances têm sido lidos na chave do ecofeminismo, do luto e das relações mãe, filha e irmã, da especulação imaginativa sobre capitalismo e direitos humanos e da memória da Guerra Fria a partir do corpo marcado pelo gênero.
Nesse sentido a Coreia do Sul é um espaço de reflexão privilegiado: do ponto de vista econômico, é uma potência que em diversos âmbitos compete com a China, mas tem uma história de colonização difícil de ser metabolizada e que afeta o imaginário, complexificando a construção de sua identidade nacional.
O país só se viu livre da ocupação japonesa em 1945, e há camadas de violência não ditas e traumas históricos invisibilizados, que são elaborados ficcionalmente na obra de Kang e de outros autores contemporâneos.
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Apesar da dicção poética e da delicadeza de sua escrita, ao explorar a dimensão reprimida ou obliterada da história do país através do desenrolar da micro-história de suas personagens, Kang às vezes incorre em arranjos narrativos não tão inovadores e já extensamente explorados.
Então talvez o Nobel deste ano não seja apenas uma coroação desta escritora, mas do que ela representa como emanação de uma linhagem de autoras sul-coreanas e, de modo geral, asiáticas, que na última década vêm conquistando um vasto público na Europa e nas Américas, abrindo seu espaço na literatura mundial.
Antes de Kang, marcaram essa internacionalização o romance "I Have the Right to Destroy Myself", ou "eu tenho o direito de me destruir", de Kim Young-ha, e "Please Look After Mother", ou "por favor cuide da mãe", de Shin Kyung-sook, que figurou na lista de best-sellers de ficção do jornal The New York Times —nenhum deles editado no Brasil. Recentemente, além disso, Baek Hee-na foi agraciada com o Astrid Lindgren Memorial Award, o mais prestigioso da literatura infantil.
Mas foi certamente um livro de Kang, "A Vegetariana", consagrado vencedor do prêmio Booker Internacional em 2016, o que teve a maior relevância para a globalização da literatura coreana.
Publicado em 2007 na Coreia do Sul e traduzido para o inglês oito anos depois, obteve enorme sucesso e inúmeras traduções. Também no meio acadêmico, tem sido grande o interesse crítico no romance, abordado a partir de perspectivas que vão do sentido alegórico até os mais centrados nas materialidade do texto.
O livro narra os desafios enfrentados por Yeong-hye, uma mulher tranquila que, assombrada por um sonho inquietante, decide parar de comer carne. O que começa como uma escolha íntima logo se transforma em um ato de rebelião, desafiando as normas sociais e as expectativas familiares e desencadeando efeitos complexos em sua vida e na de quem a rodeia.
Embora tenha recebido o Booker Internacional, a tradução de Deborah Smith ao inglês foi bastante questionada por críticos coreanos, que destacaram o domínio limitado do idioma pela tradutora, apontando erros, traduções incompletas e excessivas.
O Nobel talvez venha, então, afirmar uma nova dinâmica nessa geopolítica das letras, que embora ainda ultradependente do universo anglófono para se globalizar, começa a se render ao fator Ásia, para além do orientalismo que vê sua tradição milenar pelo olhar do exótico.
Ainda assim, a recepção do prêmio, bem como da obra da autora fora da Ásia, foi e será recheada de clichês orientalistas, a começar pelo texto disseminado pela própria organização do Nobel —que destacou sua afinidade com um suposto "pensamento oriental".