Para Carlos Adriano, como para o poeta Pierre Reverdy, a imagem é uma criação do espírito que não surge de uma comparação, mas da aproximação de duas realidades distantes. E quanto mais distantes, melhor.
"O Materialismo Histórico da Flecha contra o Relógio" é, como seus filmes anteriores, feito de aproximações. O que pode aproximar, afinal, flechas e relógios? Neste filme em especial são saltos que, nesses tempos olímpicos, talvez não seja exagerado chamar de ornamentais. Não que sejam ornamentos, mas sim que podem juntar, face a face, Lênin e a polícia brasileira, por exemplo, a prisão de indígenas sublevados e o ataque israelense a uma mesquita de Jerusalém.
Os distantes se aproximam sob a égide de Walter Benjamin e produzem a imagem que, não por acaso, é também uma ideia. Como desta vez o tema do filme é a história, não espantará ninguém descobrir que "A Flecha contra o Relógio" é o mais godardiano dos filmes de Adriano.
O tempo é linear e contínuo nos relógios. O tempo detém-se nos momentos-chave —as insurreições, as revoluções, a poesia. São os revolucionários de 1830, que explodem o tempo contínuo dos opressores. Ou da Revolução de 1974 em Portugal.
São também revoluções contra o relógio, pois interrompem o tempo. Revolução do arco e flecha —o levante dos indígenas lançando flechas contra o relógio da Globo que marcava as horas e os dias que faltavam para os 500 anos do "descobrimento".
Descobrimento? Não é bem o que pensam os indígenas. Eles estão na selva, felizes —ainda—, em preto e branco, antes que o tempo comece a correr. E depois o filme os mostra na cidade, arco e flecha em punho, atirando contra o relógio da descoberta. O relógio que consagrava a presença dos opressores em seu solo de liberdade. O relógio marca o tempo contínuo. A flecha, a ruptura. A troca do tempo da opressão pelo tempo da liberdade —o pré-descobrimento.
A poesia de Carlos Adriano se faz na moviola, ou no editor, enfim —no lugar onde as ideias se juntam para virar imagem. A poesia de Jean-Claude Bernardet já há algum tempo é seu corpo. "Cama Vazia" é um filme de montagem composto basicamente por fotos de Bernardet em tratamento hospitalar. Por um lado, o filme opõe-se à vida artificialmente longa, à interminável morte a que a lucrativa indústria dos remédios nos condena. Esse é o ponto de vista do autor-ator Bernardet.
Mas essas imagens suscitam dúvidas. Serão de sofrimento apenas ou, ao mesmo tempo, Jean-Claude encarna ali o papel do martirizado? Suas pernas frágeis, as veias marcadas, o peito cheio de sensores para aferir isso e aquilo, o rosto magro, sofrido —tudo está lá.
Cristo foi martirizado, consta, aos 33 anos. Bernardet chegou aos 88, enfrentando HIV, câncer e a quase cegueira decorrente da "Wét Macula". Mas a idade é um detalhe —o corpo martirizado do homem é que conta. Sim, Jean-Claude é ator. E mesmo que a dor seja intensa é capaz de relaxar por um instante e, em uma ou duas das fotos que compõem o filme, sorri. Um sorriso ambíguo —a um tempo sofrido e maroto.
O trauma cristão se repete hoje, intensamente, em todos os pacientes vítimas de tratamentos que, a preço de ouro, obrigam nossas vidas a se manterem vivas, mesmo que já não exista no corpo capacidade de viver. O corpo de Bernardet se exibe em "Cama Vazia" para que possa condenar esses tratamentos e seus laboratórios como puramente argentários.
Não custa lembrar que o Cristo, 33, Deus feito homem para nos ensinar o que é a dor, disse para perdoar seus algozes "porque não sabem o que fazem". Jean-Claude, 88, comediante e mártir, não perdoa os algozes da indústria médica porque eles sabem muito bem o que fazem.