Análise: David Lynch chacoalhou Hollywood com suas fantasias bizarras

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O cineasta americano David Lynch nos deixou aos 78 anos. Um dos maiores artistas da história contemporânea, ela era considerado um mestre do mundo bizarro.

Nascido em 1946, Lynch tinha idade para ter participado da chamada nova Hollywood, movimento do cinema americano que teve como seus nomes mais celebrados Martin Scorsese, Brian De Palma e Francis Ford Coppola, além de George Lucas e Steven Spielberg, os mais famosos.

Foi com Spielberg, aliás, outro nascido em 1946, que Lynch presenteou o cinema pela última vez, interpretando o papel de John Ford numa pequena cena de "Os Fabelmans", lançado há dois anos.

Como Clint Eastwood e Woody Allen, embora mais jovem que eles, o diretor de "Twin Peaks" atravessou o período fundamental desse cinema desafiador, o final dos anos 1960 e os anos 1970, criando um caminho bem particular, como um cavaleiro solitário, até chegar ao seu primeiro longa, "Eraserhead", de 1977.

Mas cinema não era sua primeira paixão. Lynch queria ser pintor. Era admirador do expressionista austríaco Oskar Kokoschka, a quem tentou encontrar em uma viagem à Áustria, sem alcançar o feito. Se pensarmos no cinema onírico que ele iria desenvolver desde os seus primeiros curtas, a conexão com a pintura de Kokoschka faz todo sentido.

Uma das características de muitos filmes da nova Hollywood é o retrato de personagens em deslocamento. Filho de um pesquisador do Ministério da Agricultura, Lynch morou em várias cidades dos Estados Unidos, até sua família se fixar em Alexandria, na Virgínia. Ele tinha então 14 anos.

Essa experiência serviu para que conhecesse a fundo aquilo que nos acostumamos a chamar de América profunda, seus costumes e suas idiossincrasias. Foi só na maturidade que realizou o filme-chave na tradução dessa experiência de vida —"Uma História Real", de 1999, curiosamente protagonizado por um idoso.

Por desenvolver a maior parte de sua carreira cinematográfica a partir dos anos 1980, e por ter alcançado sucesso só em meados dessa década, Lynch costuma ser mais associado à geração dos que despontaram tarde demais para participar da nova Hollywood, junto de Joe Dante, John Landis, John Carpenter e Michael Mann.

Foi exatamente em 1980 que ele deu o primeiro grande passo de sua carreira, a realização do clássico "O Homem Elefante", que já mostrava sua ampla capacidade narrativa e sua queda para personagens e histórias fora do normal.

Em 1981, George Lucas o convidou para dirigir "Star Wars: Episódio 6 - O Retorno de Jedi". Lynch preferiu se dedicar à adaptação turbulenta da ficção científica "Duna", deixando o caminho da força para Richard Marquand.

Nessa bifurcação, uma primeira escolha que se revelou equivocada, mas também o sinal de que ele estaria sempre disposto a seguir seu coração, trocando o certo pelo duvidoso se necessário.

Apesar de subestimado, "Duna", lançado em 1984, foi um fracasso em todos os sentidos, impondo sobre o diretor um terrível impasse. Se o passo ambicioso não deu certo, era melhor voltar às origens —o mundo bizarro.

Seu longa seguinte, "Veludo Azul", de 1986, foi o responsável por boa parte do culto ao diretor até hoje. A história traz orelhas decepadas e doses de manipulação.

O filme também trouxe a consagração de Kyle MacLachlan, o mocinho de "Duna", mas em um papel muito mais próximo ao seu verdadeiro estilo enquanto ator.

No início dos anos 1990, uma série televisiva e um road movie ampliariam esse culto. A primeira temporada de "Twin Peaks", de 1990, invadiu lares por todo o mundo, mostrando a todos, mais uma vez após "Veludo Azul", o lado podre do "American way of life", desta vez com uma carga ainda maior de fantasia e sonhos.

"Coração Selvagem", de 1990, é uma versão maneirista e ainda mais violenta de "Bonnie & Clyde", com Nicolas Cage e Laura Dern em fuga pelo país. David Lynch triunfava num terreno em que Oliver Stone, outro diretor nascido em 1946 e mais ligado ao pós-nova Hollywood, iria afundar com "Assassinos por Natureza".

Em 1992, foi lançado o que para muitos foi um passo em falso, o longa "Twin Peaks: Os Últimos Dias de Laura Palmer", supostamente para explicar ao público o enigma da série. Obviamente, Lynch não estava tão interessado em explicações, preferindo mostrar mais despistes, embora o longa se encaixe melhor num cinema do gênero de horror.

Seguiu com um período de inatividade, em que teve projetos recusados, mas criou a Asymmetrical Productions, com que faria seus dois longas mais celebrados, "A Estrada Perdida", de 1997, e "Cidade dos Sonhos", de 2001.

O primeiro segue totalmente a lógica de um pesadelo, com mudanças de protagonismo, personagens e seus duplos, criaturas assustadoras que podem estar em dois lugares simultâneos, até mesmo uma mudança de gênero, do horror para o filme de gângster. Lynch soube se reinventar.

Quatro anos depois de "A Estrada Perdida", surgiu o longa que é sua consequência e ao mesmo tempo sua culminação poética. "Cidade dos Sonhos" é o filme-chave de Lynch. Inicialmente um piloto de minissérie para a TV, foi recusado pelo canal ABC. Quando produtores franceses entraram na jogada, Lynch filmou um novo material, juntou ao arquivado e acentuou a loucura narrativa.

É até hoje seu filme mais adorado e também o mais odiado. Muitos reclamam que não entendem sua trama, não entendendo, de fato, o essencial —o cinema onírico de Lynch. A crítica francesa, em sua maioria, foi favorável, principalmente na Cahiers du Cinéma, que o elegeu como o melhor filme produzidos nos anos 2000.

Vale voltar a "Uma História Real", um dos grandes filmes de Lynch, lançado em 1999, no meio dos outros grandes. Narra, como o título brasileiro entrega, a longa viagem de um idoso em um cortador de grama para visitar seu irmão, com quem não fala há anos.

Que um diretor com fama de malucão seja capaz de um dos desfechos mais belos e sensíveis do cinema diz muito da capacidade de Lynch para surpreender.

Em 2006, lançou seu último longa, "Império dos Sonhos", que tem seus momentos, mas é frágil ante os três longas anteriores. A partir daí, Lynch se dedicaria mais à pintura, aos curtas que hospedou em seu site e à meditação, matéria em que também foi mestre.

Um breve retorno a um universo familiar foi premiado com "Twin Peaks: O Retorno", minissérie que chegou em 2017 para confundir ainda mais o público.

Apesar de vários curtas realizados depois, a terceira temporada de sua bem-sucedida minissérie, lançada em um momento em que longas para cinema e para a TV ficaram esteticamente próximos para que se olhe para o segundo com desconfiança, se tornou um testamento digno de sua belíssima carreira cinematográfica.

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