Análise: Dalton Trevisan mostrou colapso da sociedade moderna com acidez

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Dalton Trevisan surgiu num contexto de transformação do Brasil que pode ser captado literariamente pela transição do regionalismo dos anos 1930 e 1940 para uma prosa urbana que se instaura na década de 1950, na qual existem duas vertentes principais. De um lado, o romance de "sondagem interior" —na expressão de Alfredo Bosi— de autores como Clarice Lispector e Lúcio Cardoso. De outro, uma ficção marcada pelos temas da marginalidade e da violência urbana, como se encontra em João Antônio e Rubem Fonseca.

Contemporâneo de todos eles, Trevisan realizou uma síntese singular desses vetores. O cenário de seus contos é uma Curitiba habitada por seres desvalidos e deformados por uma modernização torta. Embora a criminalidade esteja sempre no horizonte, suas personagens compõem uma galeria de pobres diabos. São órfãs seduzidas e mocinhas compelidas à prostituição, maridos ciumentos e bêbados trôpegos, velhos aposentados e funcionários públicos suarentos.

Se os tipos ideais criados por Rubem Fonseca e João Antônio são o meliante e o malandro, os anti-heróis de Trevisan são tarados e pervertidos de todo tipo, que ruminam fantasias sexuais e mesquinharias pecuniárias. Eles encontram pequenos momentos de epifania em impulsos maníacos que prometem redenção da miséria material e existencial em que rastejam —e "epifania", como se sabe, é um termo que a própria Clarice Lispector acatava para descrever as iluminações domésticas de suas personagens.

Trevisan escreveu apenas um romance, "A Polaquinha", que tem como protagonista uma jovem loira que faz programas e arruma amantes para pagar seu cursinho. E um de seus livros de contos, "O Vampiro de Curitiba", ganha unidade ao descrever as peripécias de Nelsinho, tarado que persegue virgens, professoras e velhas prostitutas pelas ruas —além de ter servido de epíteto ao escritor que, sempre avesso a entrevistas e à vida literária, passava a maior parte de seu tempo enclausurado dentro de casa.

Mas o elemento de Trevisan é o conto, a narrativa curta, muitas vezes reduzida a uma única cena, um único parágrafo ou até uma única frase —que pode ser um espasmo ou um palavrão. Tudo se condensa na luz pálida que ilumina um desvão esquálido. "A vida, que é a vida, ó minha princesa? Um sórdido corredor de pensão curitibana, mil olhos vigiando cada vez que você entra no banheiro."

Além da condensação, temos o outro procedimento característico do universo do contista —a repetição, que o romancista Cristovão Tezza identificou como "a forma essencial do mundo" para Dalton Trevisan, um traço fundamental de sua literatura, "o seu peso e a sua metafísica".

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Os textos dos primeiros livros de Dalton Trevisan —começando por sua estreia, em "Novelas Nada Exemplares", de 1959— não diferem, em dimensão, das narrativas breves de outros escritores do chamado "boom do conto brasileiro" dos anos 1970, como Sérgio Sant’Anna, Luiz Vilela ou Ignácio de Loyola Brandão.

Mas já se identificam, nesses livros, contos com frases tipicamente daltonianas que resumem todo o enredo numa sentença. Em "O Jantar" —do livro "Cemitério de Elefantes", de 1964—, o rancor bíblico entre pai e filho é resumido ao extremo. "Filho, meu filho, desiste de lutar contra mim. Há mais de mim em você que de você mesmo."

As primeiras antologias, portanto, já anunciam a poética de redução e de repetição que encontraremos nas "ministórias" de livros mais recentes, como "234", "Pico na Veia" ou "Arara Bêbada", em que um breve diálogo permite contemplar o todo sórdido que o contém e precede. "O velho para a mocinha: ‘O que mais você quer? Não te dei um relógio que brilha no escuro? Uma calcinha vermelha de renda preta? Quem te lavou o corpo quando era uma ferida só?’."

Se, em geral, as personagens dos contos de Trevisan nem nome têm, é porque a grande personagem de sua obra é a cidade de Curitiba, por sua vez o espaço mental que desenha os descaminhos de seus desesperados. Sua Curitiba não é nem a pacata capital de província dos anos 1950, nem a metrópole modelo do prefeito e urbanista Jaime Lerner, mas a "grande favela do primeiro mundo" em que o autor viveu escarnecendo sadicamente da comédia humana.

Na menos típica das cidades do país, Trevisan criou uma das obras menos impregnadas de sentimento de identidade cultural ou nacional da literatura brasileira. Mas podemos identificar traços de "brasilidade" seja em suas personagens, seja no uso obsessivo do diminutivo, que entretanto o escritor desloca de seu característico contexto familiar ou afetivo para uma atmosfera de erotismo perverso —"a casadinha" cujos "biquinho dos seios" o tarado toca com o dedo "mindinho", essa repetição de diminutivos cria uma expressão minimalista para expressar obscenidades inconfessáveis.

Em relação à presença pública de Trevisan, podemos evocar seu trabalho como um dos editores da Revista Joaquim, nos anos 1940, para desfazer a ideia de um escritor refratário a qualquer vida intelectual e social, que passou a vida recusando convites para entrevistas e homenagens.

Com seu universo infernal e asfixiante, em que o humor ecoa como o riso nervoso dos condenados à morte, a obra de Trevisan é uma emancipação das questões de identidade nacional que, do romantismo ao regionalismo, foram dominantes na cena literária brasileira. O fato de essa emancipação ter ocorrido para nos lançar inapelavelmente no colapso de nossa própria modernização falhada é mais uma das ironias do vampiro de Curitiba.

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