Análise: Como 'Rainha da Sucata' espelhou na TV Globo o Brasil do Plano Collor

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Numa cena de "Rainha da Sucata", clássico da teledramaturgia que entrou na última segunda-feira no catálogo do Globoplay, a empresária Maria do Carmo Pereira —interpretada por Regina Duarte—, de origem pobre, mas que fez fama com um ferro velho, é chamada para ter uma conversa a sós com a aristocrática Laura Albuquerque Figueroa —papel de Glória Menezes—, que já viveu dias melhores.

Para além do conflito entre heroína e vilã, que disputam o amor do mesmo homem, o que se vê na tela é o embate de classes que marcou uma geração de brasileiros, num período em que as novelas ofereciam um espelho crítico da sociedade —e uma Regina Duarte que já não existe mais interpretava as heroínas e anti-heroínas que condensavam esses conflitos.

Laurinha tenta convencer Do Carmo de que ela será muito bem-vinda no lar dos Figueroa após se casar com seu enteado, Edu —papel de Tony Ramos. "Eu sei que vou aprender muito nessa convivência, com uma pessoa tão alegre e tão espontânea quanto você", diz Laurinha.

Do Carmo, a rainha da sucata, corta o papo. "Você não me acha alegre nem espontânea coisa nenhuma. Me acha brega, cafona, gentinha e vulgar. Está a fim de me suportar porque está mais por baixo do que técnico da Seleção quando perde a Copa do Mundo", responde, antes de lhe entregar um cheque em branco. "Faz aí um levantamento de quanto você vai gastar para fazer uma reforma nesta casa, encher a despensa com bastante comida para um mês, e aproveita para comprar umas roupinhas."

A história veio no rastro de "Roque Santeiro", de 1985, de Dias Gomes e Aguinaldo Silva, que opôs mito e realidade para simbolizar a volta da democracia, e "Vale Tudo", de Gilberto Braga, que discutiu a moral do país que buscava redesenhar seu futuro na Constituinte e esperava eleger o presidente da República após 28 anos

Menos lembrada por seu conteúdo político, "Rainha da Sucata", de Silvio de Abreu, mostra pelo viés econômico o dia seguinte das grandes esperanças suscitadas pela redemocratização.

Ambientada em São Paulo, a novela estreou duas semanas após o anúncio do Plano Collor, em 1990, que bloqueou os valores que excediam os 50 mil cruzados novos das contas correntes e das poupanças, além do dinheiro aplicado em renda fixa, cuja remuneração protegia com lucro seus investidores da inflação que beirava os 2.000% ao ano.

O objetivo do bloqueio, que atingiu pessoas físicas e jurídicas, era tirar o excesso de moeda de circulação como forma de combater a crise inflacionária. Entretanto, a medida atingia a chamada classe rentista, incluindo o pequeno poupador, que vivia da remuneração na renda fixa. Por sua vez, o dinheiro que estivesse de algum modo a serviço da economia real sofreu restrições mais brandas ou pôde ser imediatamente convertido na nova moeda.

Pois foi justamente o que aconteceu na ficção. Laurinha e a família Figueroa, descendentes da antiga aristocracia cafeeira que se acomodou ao capitalismo industrial brasileiro por meio da "ciranda financeira", tiveram seus valores bloqueados.

Já Do Carmo, filha do "milagre econômico", empregou seu capital em investimentos produtivos. Quando veio o bloqueio, a sucateira, como era chamada por Laurinha, tinha dinheiro para comprar Edu, seu amor de adolescência, deixando a rival para trás.

A coincidência entre realidade e ficção fez a novela ser acusada de conhecer as medidas econômicas antes mesmo da população, posto que a Globo havia apoiado Collor no segundo turno das eleições de 1989.

O autor da novela, Silvio de Abreu, afirmou ter se inspirado em uma pesquisa que mostrava que o dinheiro havia mudado de mão em São Paulo. Com o Plano Collor, o que seria a decadência de uma família, os Figueroa, tornou-se a decadência de um setor da elite brasileira —um grupo que, entretanto, pretendia assegurar seu posto no topo da cadeia alimentar.

Edu e Laurinha não estavam dispostos a aceitar a conciliação de classes entre emergentes e quatrocentões proposta por Do Carmo ao financiar a fabricação de um automóvel criado por Edu, numa época em que a indústria nacional, e não o agronegócio, "era tech, era pop".

Enquanto Edu trai Maria do Carmo associando-se a um concorrente, fazendo-a perder todo o dinheiro investido, Laurinha arma para mandar a rival para a cadeia e recuperar seu lugar na sociedade, ao lado do amado. O dinheiro teria voltado, então, a quem era de direito.

Falida pelo golpe de Edu, por investimentos errados e por ter erguido seu império no terreno de outra pessoa —Dona Armênia, uma muquirana vivida por Aracy Balabanian—, em plena avenida Paulista, então o centro do poder econômico brasileiro, Do Carmo entrega a coroa de rainha da sucata para que Armênia não destrua o prédio.

Como estamos em uma telenovela, o calvário da heroína é seguido por uma redenção. Do Carmo vai à luta para reconquistar sua fortuna comprando e vendendo sucata, repetindo a história do pai. Entretanto, estamos ao mesmo tempo num país em recessão. Collor pretendia, ao expor a protegida indústria brasileira à concorrência externa, gerar uma destruição criativa, diante da qual só os fortes e eficientes sobreviveriam.

Nesse admirável mundo novo, Edu não vai para frente com seu projeto e dona Armênia quase leva os negócios à falência. Quem é chamada, então, para salvar o PIB da novela das oito? A moça pobre que ficou rica com o próprio esforço, decaiu, mas tem todas as qualidades para vencer numa realidade econômica competitiva: Maria do Carmo.

É claro que, antes do final feliz, ela é acusada de um crime que não cometeu —o assassinato de Laurinha Figueroa, que se mata, ao ver que não há saída para sua decadência. Do Carmo volta para a cadeia e, após provar sua inocência a muito custo, aceita o amor e a conciliação de classes, agora proposta por Edu.

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